Na Lusitânia, há evidência sólida de produção de Garum e salsamenta desde o segundo quartel do século I CE nos estuários do Tejo e do Sado.
O sítio arqueológico de Tróia, situado entre o estuário do rio Sado e o oceano Atlântico, produziu garum em larga escala, tendo em conta os seus numerosos tanques de salga de peixe, que frequentemente revelam uma camada de restos de peixe no fundo, demonstrando a importância da sardinha.
A Tróia romana seria a ilha de Ácala referida pelo escritor romano Rufus Festus Avienus, que viveu no século IV, no seu livro Ora Maritima, atribuição largamente aceite pelos investigadores, embora seja difícil provar que a península de Troia foi originalmente uma ilha ou cordão de ilhas.
Imagem da Biblioteca Nacional de Portugal
Os testemunhos arqueológicos demonstram que foi um importante aglomerado urbano-industrial que produziu molho de peixe e peixe salgado desde o segundo quartel do século I d.C. até ao segundo quartel do século V, com uma interrupção apenas no final do século II – início do III, com causas ainda desconhecidas.
A sua capacidade de produção, que resulta das suas 29 oficinas de salga identificadas com quase 200 tanques, muitos deles de grandes dimensões, podendo conter 30 000 ou 35 000 litros, faz de Troia o maior centro de produção de salgas de peixe do Império Romano conhecido actualmente.
Nos séculos I e II, teria uma capacidade de produção mínima de 1.429m3, e uma capacidade estimada não inferior a 3.200m3, tendo em conta as oficinas com apenas uma pequena parte a descoberto e outras que já perderam parte dos seus tanques devido à erosão marinha.
Beneficiou fortemente da abundância de peixe e sal que o estuário do rio Sado e o mar circundante ofereciam, mas também do dinamismo económico do Império Romano, sobretudo depois da paz conquistada por Augusto. Tornou-se certamente um importante motor económico da região, exigindo toneladas de peixe e de sal para encher os seus tanques e milhares de ânforas para os produtos acabados e exportá-los.
Uma segunda fase ocorreu entre os séculos III e IV EC, e são visíveis alguns sinais das alterações socio económicas que se verificaram no século III. As grandes oficinas de peixe salgado foram divididas em produções menores, tendo existido uma notória alteração na produção de ânforas, com o aparecimento de novos modelos.
O terceiro período situa-se entre o IV e V século CE, e existem vestígios de ocupação continuada até os séculos VI ou VII. No entanto as chamadas “invasões bárbaras” do século V CE, a interrupção das rotas comerciais e o consequente declínio do comércio estabelecem o colapso da produção lusitana.
Imagens em: An overview of the fish-salting production centre at Tróia (Portugal) Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Magalhães, Patrícia Brum
O garum produzido em Tróia era realizado principalmente com sardinha, em tanques abertos, com exposição ao ar, embora protegidos do sol direto por telheiros.
Os autores antigos diferenciavam os molhos salgados de peixe (líquidos) do peixe salgado, com diversas preparações (tarichos em grego e salsamenta em latim) à base de peixe.
Em geral, os romanos colocavam o peixe em tanques, especialmente biqueirão, sardinhas e cavalas, adicionado sal em proporções prescritas e, às vezes, várias ervas aromáticas, especiarias ou vinho. Utilizavam pesos para pressionar a mistura, cobriam-na e permitiam que permanecesse ao sol por vários meses. No final desse tempo, retiravam o Garum líquido usando uma cesta, procedendo à filtragem e realizando o transporte em ânforas.
São muitos dos problemas que enfrentamos para compreender a forma como eram feitos estes molhos na antiguidade devido à enorme falta de consenso sobre a forma como eram produzidos e sobretudo porque foram realizados ao longo de vários séculos, o que pressupõe muitas alterações.
É possível utilizar a arqueologia experimental, analisar a natureza dos resíduos de molho de peixe e observar sua formação tentando reproduzir as mesmas condições e receitas utilizadas na antiguidade. A arqueologia experimental supostamente replica o passado e procura reproduzir as condições sob as quais a atividade histórica que estudamos poderia ter acontecido.
Imagens em: Un grand complexe industriel a Tróia (Portugal) de Robert ETIENNE, Yasmine MAKAROUN, Françoise MAYET 1994
Já realizámos diversas experiencias em condições controladas, mas neste caso a nossa escolha foi replicar as condições possíveis, e não replicar uma receita da antiguidade diretamente num tanque aberto ao calor do sol.
Assim foi utilizada sardinha (Sardine pilchardus) pescada na águas de Setúbal no dia anterior à preparação do Garum, e sal produzido no estuário do Sado, dois ingredientes que são determinantes para o produto final, procurando replicar as condições da época antiga quanto à matéria prima utilizada na época.
Outros fatores que influenciam de forma determinante a qualidade do Garum são a localização geográfica onde o mesmo é produzido, que neste caso é rigorosamente a mesma. Também a época em que o Garum era produzido, sendo mantido assim o mesmo período do ano, de forma a procurar ter condições atmosféricas semelhantes, como exposição solar, temperatura e humidade do ar.
Dado que os tanques originais têm as paredes gastas, com fraturas e musgo ou líquenes, não era recomendável o contacto directo com as paredes. Optámos assim por utilizar um saco de polipropileno de 90 mícrones, de 1000 litros de capacidade, (Flexitank Embatank),com certificação de qualidade alimentar, que ficou em contacto com as paredes da cetária, absorvendo desta forma o calor das paredes de pedra e reproduzindo assim a temperatura diurna e noturna da época do ano em que o Garum era produzido.
FLEXITANK EMBATANK 1000LT.
IBC flexible designed to transport liquids on liners
Volume: 1,000 L
Top Filling
Dimensions: 1050 x 1050 x 970
Outro dos fatores que influencia a produção de Garum é o contato ou não com o ar. Supõe-se que os tanques fossem tapados com esteiras pelos Romanos, existindo dessa forma um contato total com o ar, embora o Garum possa ser também produzido de forma hermética. No entanto é de prever a libertação de gases e, de forma a reproduzir aproximadamente o modo de produção em Tróia, a nossa opção neste caso foi de deixar o saco parcialmente aberto para permitir trocas gasosas, mas ao mesmo tempo evitar a possibilidade de exagerada evaporação, que pudesse secar o Garum.
Quando o Garum era produzido em tanques abertos existem evidencias de que a perda de líquido era compensada com a reposição de água, fator que pretendemos evitar, até porque numa oficina de produção romana a atividade e controle eram permanentes, não sendo viável presentemente verificar diariamente a consistência do preparado.
Por cima foi colocada uma esteira de vime de forma a evitar a exposição solar desprotegida.
Para além da colaboração do departamento de arqueologia das ruínas de Tróia, sem o qual não teria sido possível esta experiência, o projecto conta ainda com a participação das investigadoras na área alimentar Marisa Santos, Catarina Prista e Anabela Raymundo do Centro de Investigação em Agronomia, Alimentos, Ambiente e Paisagem do Instituto Superior de Agronomia, e da zooarqueóloga Sónia Gabriel e da palinóloga Patrícia Mendes, ambas do Laboratório de Arqueociências da Direcção Geral do Património Cultural.
A evolução do Garum será acompanhada de análises regulares, que nos permitirão compreender melhor este processo e registrar a evolução deste precioso molho.
Supervisão técnica do texto: Arqueóloga Inês Vaz Pinto – TROIA RESORT – Ruínas Romanas de Tróia
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