Garum timeline

9th-8th century BCE
A origem do garum: a era pré-romana

O garum pode ter sido introduzido pelos fenícios já no século IX-VIII BCE, talvez importado diretamente do Oriente, ou dos gregos, que poderiam conhecê-lo desde o século VII BCE, durante suas viagens de abastecimento ao longo da costa do Mar Negro, uma região rica em peixes. CURTIS 2001: 318.

mid 5th century BCE
Casa das ânforas em Corinto

No mundo grego, as evidências arqueológicas mais antigas datam de meados do século V BCE. Pesquisas  realizadas na cidade de Corinto restauraram o que deve ter sido o armazém de um rico comerciante, posteriormente reconvertido em centro de armazenamento e venda de vinhos e peixes (provavelmente garum), denominado pelos arqueólogos de “Casa das ânforas púnicas” devido à grande presença de ânforas fenícias ali encontradas.

early 1st century CE
Astronomica

Uma das primeiras referências literárias conhecidas ao garum não surge num livro de receitas, mas sim na Astronomicade Manílio, uma obra poético-didáctica de astrologia do início do século I a.C., escrita por Marcus Manilius, durante o final do reinado de Augusto e o início do de Tibério. Neste texto, o processo de captura do peixe e o conteúdo do próprio peixe são descritos com algum detalhe, visando a produção daquilo que viriam a ser identificados como os três principais molhos de peixe da Antiguidade: garum, liquamen e allec.

Embora o texto deixe espaço para várias interpretações — por se tratar de um poema e, portanto, menos fiável como fonte técnica —, Sally Grainger defende que Manílio começa por descrever pescadores a capturar focas e, em seguida, apresenta de forma vívida a matança em larga escala de atuns, cujo sangue tinge o mar de vermelho. A parte seguinte do poema fala de um "segundo abate", já em terra firme, quando os peixes são cortados em pedaços.

Isto sugere que essa segunda fase pode corresponder ao processamento do peixe para a produção de molhos, possivelmente apontando para a criação de dois molhos distintos a partir de diferentes partes ou etapas de preparação do peixe.

O texto deixa ambiguidade na forma como os termos são estruturados, sugerindo diferentes possibilidades — entre elas, a ideia de que os dois produtos distintos seriam o allec, o resíduo pastoso deixado após a fermentação, feito com a carne de peixes como a cavala, e o liquamen, o molho de peixe propriamente dito.

77 CE
A História Natural, de Plínio

A História Natural, de Plínio num manuscrito de meados do século XII da Abbaye de Saint Vincent, Le Mans, França.

No Livro 31 da sua História Natural, Plínio, o Velho, oferece uma descrição detalhada da fabricação e dos usos do garum, embora os seus relatos sejam frequentemente ambíguos e difíceis de interpretar. Plínio descreve o garum como um produto de luxo, destacando versões premium como o flos gari, feito a partir de vísceras e partes descartadas do peixe, sublinhando o seu elevado valor apesar da simplicidade dos ingredientes.

Contudo, é provável que Plínio estivesse apenas familiarizado com as versões mais elitistas do garum, uma vez que menciona o garum sociorum, um garum escuro e rico em sangue, produzido pelas províncias aliadas, que gozava de grande prestígio. No entanto, este molho pouco ou nada tinha em comum com o mais comum liquamen, feito a partir de peixes pequenos, ao qual Plínio aparentemente não teve acesso.

O termo garum sociorum era considerado o molho mais fino e caro do seu tempo, provavelmente feito com o sangue e as vísceras do salmonete (mugil). Fontes posteriores e interpretações modernas sugerem que, embora a sua origem fosse específica, o nome sociorum evoluiu para uma designação mais ampla, aplicada a molhos de peixe elitistas, ricos em sangue, independentemente da sua proveniência geográfica.

Para Plínio, o garum não era apenas um condimento — era um símbolo de sofisticação, uma mercadoria comercial e uma substância com aplicações medicinais. O autor menciona também a existência de um resíduo resultante da sua produção, conhecido como allec, que era utilizado em preparações mais económicas e consumido pelas classes populares.

A obra de Plínio continua a ser uma das fontes mais ricas para compreender tanto os aspectos técnicos como simbólicos do garum na Roma imperial primitiva.

Plínio escreveu os primeiros dez livros em 77 CE e estava empenhado em rever todo o seu trabalho o que acabou por não conseguir terminar.

1st-5th century CE
Apicius – De Re Coquinaria

O livro de receitas romano atribuído a Apicius inclui dezenas de referências ao liquamen, um termo que, na Antiguidade Tardia, passou a ser utilizado de forma intercambiável com garum. As receitas demonstram que o liquamen se tinha tornado um tempero fundamental na cozinha romana, substituindo frequentemente o sal.

Embora o termo garum apareça menos frequentemente no corpus apiciano, a função e a omnipresença do liquamendeixam claro que o molho de peixe era parte integrante das práticas culinárias romanas. A preferência pelo termo liquamen em detrimento de garum poderá refletir uma evolução linguística ou uma mudança subtil nos métodos de produção.

Independentemente disso, estas referências oferecem um vislumbre prático sobre o uso quotidiano destes molhos na culinária romana — desde pratos simples de legumes até preparações elaboradas para banquetes.

1st century CE
Aulus Umbricius Scarus

Aulus Umbricius Scarus foi o principal produtor de garum ou molho de peixe de Pompéia. Aulus Umbricius começou sua atividade comercial na primeira metade do primeiro século EC tendo continuado provavelmente até a erupção do Vesúvio em 79 EC. Mais de cinquenta urcei- pequenos recipientes de uma alça usados para o condimento - foram encontrados em Pompéia com o selo de Scarus. Estima-se que cerca de 30% do molho de peixe da Campânia era produzido nas suas fábricas, que eram conhecidas por exportar para o sul da França. Scarus fez fortuna com o seu negócio, como podemos testemunhar em painéis de mosaicos na sua casa. Cada mosaico ostentava os méritos da sua marca particular de molho de peixe. Dois são relacionados com o garum de menor qualidade, enquanto outros dois elogiam o liquamen de Scarus, o de maior qualidade. “A flor da cavala garum de Scarus da fábrica de Scarus”, anuncia a inscrição.

1st century CE
De Re Rustica

Lúcio Júnio Moderato Columela (Lucius Iunius Moderatus Columella), natural de Cádis, compôs, por volta de meados do século I d. C., o tratado latino De re rustica sobre a agricultura, que constituía, sem dúvida, a mais importante das disciplinas económicas da Antiguidade.
Depois de descrever a técnica de conservação da carne suína pelo sal, afirma que era semelhante à utilizada para os peixes:
“… Então a carne é cortada em pedaços de meio quilo cada; em seguida, pega-se um jarro / barril e espalha-se no fundo uma camada de sal torrado, ligeiramente partido em pedaços: os pedaços de carne são colocados de forma a ficarem muito próximos uns dos outros e o sal é colocado por cima de cada camada. Quando chegar ao topo da jarra / barril, a última parte deve ser preenchida com sal e o recipiente é coberto com pesos. Poderá comer esta carne em qualquer altura; é mantida em conserva como peixe em sal ”

1st century CE
Trimalchio’s dinner

Painting by Roberto Bompiani captures a common 19th-century association of Roman dining and excess. A Roman Feast, late 1800s. The J. Paul Getty Museum

Uma passagem no livro Satyricon, de Petrónio, escritor romano, mestre na prosa da literatura latina, satirista notável, no capítulo “O Banquete de Trimálquio”, descreve a apresentação de um dos cursos mais célebres no jantar de Trimálquio, uma das personagens do livro, conhecido pela pompa e ostentação dos seus banquetes, nos quais serve pratos exóticos e extravagantes.

Trimálquio disse: “Vamos comer! Este é o melhor dos banquetes”. Quatro escravos […] tiraram a tampa da bandeja colocada na mesa […]. Nos cantos da bandeja, quatro estátuas de Marsias estavam a derramar garum piperatum de pequenas bolsas de couro. ”

Esta passagem mostra como o garum não era apenas um tempero sempre presente na gastronomia da época (e obviamente líquido), mas que era também um símbolo de status exibido durante os banquetes mais luxuosos.

In Search of Garum. The “Colatura d’alici” from the Amalfitan Coast
(Campania, Italy): an Heir of the Ancient Mediterranean Fermented Fish
Sauces.

3rd century CE
Pseudo-Gargilius Martialis – De medicina et de virtutibus herbarum

Atribuído a um autor romano tardio ou bizantino inicial, este texto médico discute o garum num contexto terapêutico. Uma receita de molho de peixe sobreviveu num manuscrito deste texto datado dos séculos IX–X, embora não corresponda inteiramente ao tema original da obra.

Segundo essa referência, a receita inclui uma lista elaborada de especiarias e ervas aromáticas, e até exige a adição de mel e vinho. O molho era produzido através da fermentação do peixe com sal; o líquido extraído (denominado liquamen ou oenogarum) era depois misturado com vinho, ervas, especiarias e mel, e levado à fervura para reduzir o seu volume. O produto final era cuidadosamente filtrado ainda quente e armazenado num recipiente selado.

Este preparado era recomendado para tratar problemas digestivos e como antisséptico, o que evidencia o papel multifacetado do garum na sociedade romana — não apenas como intensificador de sabor, mas também como agente terapêutico.

Este uso reflecte as teorias médicas da Antiguidade, que muitas vezes classificavam os alimentos fermentados ou salgados como curativos, sobretudo na regulação dos humores corporais. A presença do garum tanto nas cozinhas da elite como nos remédios caseiros sugere o seu amplo alcance na sociedade romana e a sua duradoura versatilidade simbólica.

3th century CE
Receita de garum de Gargilius Martialis

Photo: Inicio da receita de Gargilius Martialis segundo o código de Saint-Gallen. 

Receita generalista de molho de peixe, que agora é entendida como um capítulo posterior anexado ao texto do século III CE, de Gargilius Martialis. A receita sobreviveu num único manuscrito do século IX / X da obra latina Medicina ex holeribus et pomis  ("Medicamentos apartir de frutas e vegetais") que foi supostamente escrito no século III.

Gargílio Marcial (XX, 46, 1 e seguintes) – séc. III.
“Usam-se peixes gordos como sardinha e cavala aos quais se juntam, na porção de um terço, as vísceras de vários peixes. É preciso um recipiente com a capacidade de uma trintena de litros. No fundo do recipiente põe-se uma camada espessa de ervas aromáticas secas com sabores fortes como o endro, coentros, funcho, aipo, hortelã, pimenta, açafrão, oregãos. Sobre este fundo dispõem-se as vísceras e os peixes pequenos inteiros, enquanto os maiores vão cortados em pedaços pequenos. Por cima põe-se uma camada de sal sobre as outras duas. Repetir as camadas até ao bordo do recipiente. Deixar repousar ao sol durante sete dias. Durante outros vinte dias mexer frequentemente. No final obtém-se um líquido um tanto denso que é o garum. Esse conservar-se-á por muito tempo.”

301 CE
The Edictum de pretiis by Diocletian (301 CE)

‘Edictum de pretiis rerum venalium’ promulgated by Emperor Diocletian in 301 AD

O Edictum de pretiis de Diocleciano (301 CE), promulgada a fim de combater o aumento da inflação do Império, estabeleceu um teto máximo para os custos de garum, e separou o liquamen primum, cujo preço poderia chegar a dezesseis denários por sextário (cerca de 3072  sestércios por ânfora) do liquamen secundum, de segunda escolha, que não poderia ultrapassar doze denários

early 7th century CE
Isidore of Seville – Etymologiae

Isidoro de Sevilha documenta o garum e o liquamen na sua enciclopédia Etymologiae, uma obra que visava preservar o saber clássico dentro de um enquadramento intelectual cristão. Isidoro descreve o garum como um líquido salgado de peixe, originalmente produzido a partir de um peixe conhecido pelos Gregos como garos. Refere que, no seu tempo, o garum já era fabricado a partir de vários tipos de peixe, embora continuasse a manter o seu nome grego original.

Este facto representa um ponto histórico significativo: mesmo com a transformação do mundo romano, a terminologia associada aos molhos de peixe manteve-se, embora com significados e métodos de produção em evolução. No entanto, surge alguma confusão na forma como Isidoro utiliza termos técnicos como salsamentum (habitualmente descrito como um produto sólido de peixe salgado) e muria (uma salmoura ou líquido), frequentemente referidos juntamente com o liquamen.

O próprio Isidoro admite a confusão entre estes termos, listando-os, mas sem oferecer uma distinção precisa. Esta ambiguidade revela a perda de clareza terminológica durante o período tardo-antigo, numa altura em que a produção prática de garum provavelmente já estava em declínio, embora a sua memória persistisse na linguagem e na literatura.

A obra de Isidoro ilustra como o conhecimento das práticas romanas foi transmitido ao mundo medieval, mesmo quando os métodos concretos se tornavam obscuros. O seu tratamento do garum é indicativo de um padrão mais amplo: a preservação intelectual aliada a uma transformação cultural.

10th century CE
Geoponica

Geoponia é o nome de uma coleção de cerca de vinte livros sobre agronomia e agricultura escritos em grego e compilados no século X em Constantinopla pelo imperador bizantino Constantino VII.

A palavra grega geoponica significa “empresas agrícolas”.

O trabalho cobre todo tipo de informação agrícola, como clima, celeste e terrestre, assim como presságios, viticultura, oleocultura, apicultura, medicina veterinária, construção de tanques e muito mais, sendo que parte que aqui reproduzimos tem a ver com o fabrico de garum.

NOTA: A coleção do século X é algumas vezes erroneamente atribuída em sua totalidade ao autor do século VII de Cassian Baso Casianus Basso Scholasticus, cuja coleção, também chamada de Geoponica, foi integrada na compilação existente.

more info

1991
Garum and Salsamenta in Materia Medica

Robert Curtis, Garum and Salsamenta in Materia Medica (1991)

2020 Dec 30
The Story of Garum – Sally Grainger

The Story of Garum, Fermented Fish Sauce and Salted Fish in the Ancient World – Sally Grainger

2021 Jan 26
Garum em Tróia

As Ruínas Romanas de Tróia e o SELO DE MAR realizaram, pela primeira vez em mais de quinze séculos, uma produção de Garum num dos tanques de salga de peixe deste complexo arqueológico.

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