Suplicio dos doces

TÍTULO: Suplicio dos doces

SUB TÍTULO: 

AUTOR: Silvestre Aranha

DATA 1ª EDIÇÃO: 1727

EDITORA: manuscrito

IMPRESSO POR: 

Texto em BiBlioAlimentAriA

Alimentação, Saúde e Sociabilidade à Mesa no acervo bibliográfico da Universidade de Coimbra

Carmen Soares (Coord.)

Imprensa da Universidade de Coimbra
Coimbra University Press

Escrito por um Padre Jesuíta e mestre de teologia, Silvestre Aranha, o texto jocoso copiado em três páginas de um manuscrito em que se reúne matéria muito diversa (o Ms. 120 da BGUC 7) constitui um excelente testemunho da literatura composta por autores eclesiásticos, destinada ao entretenimento moralizante e pedagógico de alunos dos colégios de Coimbra. Conforme esclarecem as palavras introdutórias ao traslado do texto, o mesmo foi tornado público em duas aulas do referido mestre, ocorridas a 1 e 15 de março de 1727, no Colégio das Artes, então propriedade da Companhia de Jesus (1555‑1759, ano da expulsão da Ordem de Portugal). Ao padre jesuíta atribuem‑se, nos manuscritos 120 e 336, quatro composições, identificadas com nomes distintos em ambos os lugares. Assim, em Ms.120 dá-se pelo título de “Banquete contencioso” 8, de que a Parte 1 é o “Suplício dos doces”, a Parte 2 “Descrevece de seu nascim.[ento] o Rio Mondego, em methaphora de pessoa humana, Academico Conimbricense”, a Parte 3 “Descripção da Corte dos animaes terrestres”9 e a Parte 4 e última “Descrevece hũ Banquete em forma de Batalha”.

Deste conjunto, interessa particularmente ao nosso tema a Parte I. Na verdade, o “Suplício dos doces” constitui um bom retrato da doçaria que chegava às mesas pelo menos da comunidade docente e discente de estudos pré‑universitários da Coimbra dos inícios do séc. XVIII. O motivo de inspiração é retirado do quotidiano estudantil, onde os doces (muitos preparados nas numerosas casas de religiosas da cidade) são consumidos com um prazer não isento das culpas do luxo e da gula. A metáfora que serviu ao autor para construir uma narrativa em simultâneo satírica e moralizante foi precisamente a do julgamento em tribunal. Os réus são os doces, os juízes pertencem à Academia, os delitos apresentam uma dupla natureza – económica (“as boas pancadas [dadas] na bolsa [dos estudantes]”) e sanitária (“fazia tanto mal à saúde dos Académicos”) – e a sentença traduz‑se na condenação (quase) geral dos “criminosos”.

Do cardápio guloso desse julgamento fazem parte tipologias diversas de doces: bolos secos (pão‑de‑ló) e fritos (sonhos), frutas (amêndoa, pêssego, abóbora, ameixa, pera, melão, limão e laranja), conservadas em açúcar de maneiras diversas (cobertas, cristalizadas, em calda e de doce – caso da marmelada e da geleia), plantas comestíveis conservadas em açúcar (talos de alface e o tubérculo da escorcioneira), um doce de ovos (os fios de ovos, então conhecidos por “ovos reais”) e outro doce de ancestral tradição medieval, portuguesa e europeia, o manjar branco; doces obtidos de várias formas de preparar o açúcar (caramelo, alfenim, pastilhas). Há igualmente menção, entre os réus, à preparação do açúcar com pétalas ou água de rosas (por isso denominado de “açúcar rosado”), que alega em sua defesa ser sobretudo um doce de utilidade médica, usado na botica como purgante. Chamado à 9 Pequena alteração do título, no Ms. 336: “Descripçaõ Da Corte e Republica dos animais terrestres”. barra do tribunal foi também o grande cúmplice dos criminosos doces: o açúcar. Neste caso a sentença dos juízes foi unânime: ser queimado!

Como se percebe por este último exemplo de pena aplicada aos condenados, o autor tira partido das técnicas de preparação ou de apresentação dos doces para obter o desejado efeito jocoso.

Vejamos alguns exemplos: o pão‑de‑ló apresenta‑se “todo fofo e com o seo vestido de amarello gemado com cuberta tostada”, não se livrando da condenação capital de “morrer affogado em vinho” (numa alusão ao seu consumo ensopado em vinho); ao caramelo, que em frio solidifica, só se podendo comer chupando (“pedia humildemente [aos juízes] que lhe perduassem atendendo que no Verão passado lhe confiscarão os bens chupando‑lhe tudo quanto tinha”) sentencia‑se a pena correspondente ao método de ser eliminado (“morrer afogado em agua”); o alfenim, uma massa de açúcar repuxada à mão para moldar, graças a essa técnica de confeção, é dos poucos réus não condenados, valendo‑se para tal dessa arte (pois “deo tantas voltas athe que escapou”); os confeitos de açúcar, graças às suas reduzidas dimensões, receberam a indulgência do perdão, precisamente por serem considerados “menores”; sorte inversa tiveram os réus seguintes, os talos de alface, cuja maturidade (“por serem já taludos e espigados”) lhes valeu a condenação 10; também a marmelada escapou à condenação, desta feita justifica o autor a divisão dos votos dos juízes em determinarem formas de “execução” que retratam as duas formas em que era vendida: inteira ou aos bocados; o duplo sentido do vocabulário é recurso estilístico agora explorado na metáfora entre comida e política, uma vez que o jesuíta afirma que valeu a salvação da ré marmelada ter “sido de grande utilidade a todos na dieta de Cambray” – usando a palavra “dieta” tanto no sentido de “regime” como de “assembleia”, numa remissão clara a batata, a hortaliça, a sardinha e o bacalhau, constituem quase exclusivamente a alimentação dos aldeões portugueses”. Já o parágrafo de abertura da entrada “Bebidas brancas” (p. 14) é bem o espelho da condenação dos excessos alimentares e comportamentos desviantes a ele associados:

“Se o vinho, bebido em condenável excesso, pode e tem produzido frutos desgraçados da ordem física e moral, as bebidas brancas, por seu turno, têm dado aos hospitais, aos cemitérios e às prisões um contingente horroroso.”

Num segundo momento, Rosa Maria procede à apresentação, por ordem alfabética, das receitas propriamente ditas: primeiro os pratos cozinhados ou crus (as saladas) a que contemporaneamente chamamos “salgados”; depois os doces (agrupados em cinco rubricas independentes: Dôces práticos, Carapinhadas, Compotas, Geleas, Queijadas). Note‑se, no entanto, que a intenção didática da obra continua a marcar presença mesmo nesta parte, uma vez que é antecedida por página e meia de observações da autora sobre os efeitos favoráveis da cocção dos alimentos, que, numa linha ancestralíssima (remontante, como sabemos, aos escritos gregos de dietética da Escola Hipocrática, no século V a. C., herança a que não se alude na presente obra), entendia o cozinhar “como um processo preliminar da digestão” (p. 21).

Os benefícios da ação do fogo sobre os alimentos são de ordem química (produzindo a transformação dos seus componentes), higiénica (eliminando parasitas) e gastronómica (promovendo o apetite, através do estímulo dos sentidos do paladar e da vista).

Que estes princípios, e em particular o estético e gustativo, foram tidos em conta na redação das receitas comprovam‑no, por exemplo, as recomendações finais da receita de arroz à Valenciana (p. 27): “Para dar melhor apresentação deve‑se pôr tiras de malagueta, que não só dá bom paladar como também são aperitivo para o vinho”.

Mas há anotações no pé das receitas que abordam assuntos bem diversos, como é o caso da descrição de um utensílio da bateria de cozinha que seria pouco conhecido. Refere‑se a “umas frigideiras especiais para estrelar ovos separados uns dos outros”, efeito que se consegue devido ao fundo apresentar depressões onde se colocam, sem se tocarem, os ovos a estrelar (mencionadas na receita de Ovos estrelados à portuguesa, pp. 118‑119).

No que se refere à presença de um receituário internacional, observamos que continuam a marcar presença várias receitas de títulos de origem europeia (francesa, espanhola, italiana, inglesa e alemã). Atentemos, porém, com algum detalhe na presença da gastronomia declaradamente portuguesa neste livro de receitas. O nosso levantamento é apenas ilustrativo e tem por critério a presença no título de uma origem nacional (a), regional (b) e local (c):

a) Açorda à Portuguesa (p. 23, em verso); Bacalhau à portuguesa (p. 30), Cabeça de vitela à portuguesa (p. 65), Carne assada à portuguesa (p. 71), Carne estufada à portuguesa (p. 72), Leitão assada à portuguesa (p. 99), Molho de vilão à portuguesa (p. 112), Ovos estrelados à portuguesa (p. 117), Papas de milho à portuguesa (p. 118), Sopa de carne à portuguesa (p. 139);

b) Açorda à alentejana (p. 23), Bacalhau de cebolada à alentejana (p. 35), Bacalhau em açorda à alentejana (p. 55), Sopa à alentejana (p. 144), Bacalhau com couve‑flor, à transmontana (p. 44), Carneiro à transmontana (p. 74), Coelho à transmontana (p. 78); Queijada da Madeira (p. 189);

c) Bacalhau à moda do Porto e Bacalhau à portuense (p. 33); Tripas à moda do Porto (p. 146), Rósbife à portuense (p. 132), Bacalhau à Ericeira (p. 37); Bacalhau albardado à moda de Águeda (p. 39), Bacalhau em arroz à moda do Crato (p. 55), Bacalhau à moda de Lamêgo (p. 58), Fatias doces de Braga e Fidalguinhos de Braga (160), Maneiszinhos de Elvas (p. 162), Mulatos de Torres (p. 162), Sopapos de Torres (p. 194), Ovos moles de Aveiro (p. 163), Palitos de Oeiras (p. 164), Pudim de ovos à moda de Coimbra (p. 174), Queijada de Sintra (p. 189), Queijada de Estremoz (p. 190).

Destacamos ainda, por corresponder a uma atenção especial que o universo culinário brasileiro teve no contexto editorial desta primeira metade do séc. XX, receitas cujo nome denuncia essa origem e/ou público de matriz cultural lusa: Perú recheado à brasileira (p. 123); Pudim de pão à brasileira (p. 174) Baba di moça (p. 152), Baba di moça com côco (p. 152), Biscoitos de côco à Sinhazinha (p. 154), Compota à Sinhazinha (p. 180), Corações de moça (p. 158), Pudim à Tijuca (p. 172).

7 O texto foi transcrito e publicado por Dina Sousa, mas a partir de uma outra cópia existente na BGUC (Ms. 555, pp. 442‑445), na obra A doçaria conventual de Coimbra. Colares Editora, Coimbra, 2011, pp. 111‑113. Seguimos essa transcrição. Na BGUC há ainda um outro manuscrito com traslado do texto de Silvestre Aranha, o nº 336, folhas 83‑86.

8 No M s. 336 vem intitulada “Descripçoẽs jocoserias que recitou nas Mesas da Compª. da Universide. de Coimbra o Pe. Sylvestre Aranha no anno de 1727.

9 Pequena alteração do título, no Ms. 336: “Descripçaõ Da Corte e Republica dos animais terrestres”.

10 O aproveitamento dos talos da alface, que geralmente eram desperdiçados no consumo do vegetal em fresco, revela bem como o açúcar permitia, através da transformação em conserva, não só prolongar a “vida” dos produtos alimentares, como tornar consumível um produto eventualmente votado ao desperdício. Já aparece receita de “talos de alface” no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria (receita XLVIII, in Arnaut, S. D., Manupella, G. (1967), O “Livro de Cozinha” da Infanta D. Maria de Portugal. Coimbra).