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Público – Garum como no tempo dos romanos

"Garum como no tempo dos romanos"
FUGAS - jornal Público - 3 abril 2021

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What's Going On

Garum Ostra (Field garum project)

Field garum project (oyster)

Location: Setúbal - Portugal

Oyster garum - day 1

2021 march 4

Oyster garum - day 4

2021 march 8

pleasant sea aroma

Oyster garum - day 8

2021 march 12

pleasant sea aroma

Oyster garum - 22nd

2021 march 27

pleasant sea aroma

Temperatures March 2021 
March 2021 temperature

Oyster garum - day 36

2021 april 09

the "sea smell" has disappeared and it has a bad odour, loaded with iodine

Oyster garum - day 50

2021 april 23

maintains bad odour

Temperatures for April 2021
April 2021 temperature

Oyster garum - day 64

2021 May 07

maintains bad odour

Oyster garum - day 87

2021 May 30

maintains bad odour

Temperatures for May 2021
May 2021 temperature

Oyster garum - day 115

2021 Jun 27

Temperatures for June 2021
June 2021 temperature

Oyster garum - day 145

2021 july 27

odour not yet pleasant

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Tuna garum (Field garum project)

Field garum project (tuna)

Location: Setúbal - Portugal

Tuna garum - day 1

2021 march 4

Tuna garum - day 4

2021 march 8

Tuna garum - day 8

2021 march 12

intense but not unpleasant odour

Tuna garum - 22nd

2021 march 27

intense but not entirely unpleasant odour

Temperatures March 2021 
March 2021 temperature

Tuna garum - day 36

2021 april 09

intense, unpleasant odour

Tuna garum - day 50

2021 april 23

intense, unpleasant odour

Temperatures for April 2021
April 2021 temperature

Tuna garum - day 64

2021 May 07

intense, unpleasant odour

Tuna garum - day 87

2021 May 30

intense, unpleasant odour

Temperatures for May 2021
May 2021 temperature

Tuna garum - day 115

2021 June 27

Much less intense odour, but still not pleasant. Organic matter quite broken down and diluted.

Temperatures for June 2021
June 2021 temperature

Tuna garum - day 145

2021 july 27

Much less intense odour, not unpleasant. Organic matter completely broken down and diluted.

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Garum de espadarte (Field garum project)

Field garum project (espadarte)

Location: Setúbal - Portugal

Garum de espadarte - dia 1

2021 march 4

Garum de espadarte - dia 4

2021 march 8

sem odor desagradável

Garum de espadarte - dia 8

2021 march 12

sem odor desagradável

Garum de espadarte - dia 22

2021 march 27

Temperatures March 2021 
March 2021 temperature

Garum de espadarte - dia 36

2021 april 09

sem odor desagradável

Garum de espadarte - dia 50

2021 april 23

sem odor desagradável

Temperatures for April 2021
April 2021 temperature

Garum de espadarte - dia 64

2021 May 07

sem odor desagradável

Garum de espadarte - dia 87

2021 May 30

sem odor desagradável

Temperatures for May 2021
May 2021 temperature

Garum de espadarte - dia 115

2021 June 27

sem odor desagradável

Temperatures for June 2021
June 2021 temperature

Garum de espadarte - dia 145

2021 July 27

sem odor desagradável

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What's Going On

Garum de cavala (Field garum project)

Field garum project (cavala)

Location: Setúbal - Portugal

Garum de cavala - dia 1

2021 march 4

Garum de cavala - dia 4

2021 march 8

Garum de cavala - dia 8

2021 march 12

Garum de cavala - dia 22

2021 march 27

Temperatures March 2021 
March 2021 temperature

Garum de cavala - dia 36

2021 april 09

odor intenso a peixe, não desagradável

Garum de cavala - dia 50

2021 april 23

odor intenso a peixe, não desagradável

Temperatures for April 2021
April 2021 temperature

Garum de cavala - dia 64

2021 May 07

odor intenso a peixe, não desagradável

Garum de cavala - dia 87

2021 May 30

odor intenso a peixe, não desagradável

Temperatures for May 2021
May 2021 temperature

Garum de cavala - dia 117

2021 Jun 27

odor menos intenso a peixe, não desagradável. Remoção de película superior.

Temperatures for June 2021
June 2021 temperature

Garum de cavala - dia 147

2021 july 27

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Garum de sardinha (Field garum project)

Field garum project (sardinha)

Location: Setúbal - Portugal

Garum de sardinha - dia 1

2021 march 4

Garum de sardinha - dia 4

2021 march 8

Garum de sardinha - dia 8

2021 march 12

Garum de sardinha - dia 22

2021 march 27

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March 2021 temperature

Garum de sardinha - dia 36

2021 april 09

odor intenso a peixe, não desagradável

Garum de sardinha - dia 50

2021 april 23

odor intenso a peixe, não desagradável

Temperatures for April 2021
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Garum de sardinha - dia 64

2021 May 07

odor intenso a peixe, não desagradável

Garum de sardinha - dia 87

2021 May 30

odor intenso a peixe, não desagradável

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Garum de sardinha - dia 115

2021 June 27

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Garum de sardinha - dia 145

2021 july 27

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What's Going On

Anchovas de sardinha

Início de experiência de produção de sardinhas anchovadas

Agora é preciso esperar que o tempo produza o seu efeito

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GARUM sea seal

Garum de cavala

Garum de cavala

Garum de cavala flos gari límpido (flor do garum) obtido a partir da primeira filtragem

Produzido com cavalas de Setúbal, scomer scombrus, capturadas nas águas do rio Sado. Límpido flos gari (“flor” de garum) obtido a partir do primeiro líquido filtrado do
processo de maceração dO peixe, feito com sal do rio Sado, em pequenos lotes, para uma mistura única de sabor ousado e perfume suave.

Ingredientes: Cavala da costa portuguesa de Setúbal e sal

CONT. NET 50ML – PESCADO SELVAGEM EM SETÚBAL – SEM CORANTES NEM CONSERVANTES

Garum era sem dúvida o condimento favorito dos romanos. Feito de diversas partes de peixe fermentadas, era um tipo de molho de peixe produzido em todo o império. Altamente proteico, o GARUM, aumenta a intensidade do sabor. No século I d.C, o garum, produzido em Espanha a partir da maceração de cavala, era considerado o melhor garum. O seu custo era comparável apenas ao dos melhores perfumes (com mil sestércios, compram-se dois congi, o equivalente a cerca de seis litros) Marcus Valerius Martialis (Século I d.C.) elogia o luxo do garum produzido desde que o primeiro sangue jorrou da cavala recém cortada, considerado um particularmente luxuoso e apreciado presente.

FAMÍLIA Scombridae 

NOME CIENTÍFICO Scomber scombrus 

Vive nas águas temperadas do Mediterrâneo, Mar Negro e norte do oceano Atlântico.

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Roman influence on the Sado

Creiro (Arrábida)

Creiro (Arrábida):

um estabelecimento de produção de preparados de peixe da Época Romana
Carlos Tavares da Silva* e Antónia Coelho-Soares*

 * Centro de Estudos Arqueológicos, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (Associação de Municípios da Região de Setúbal) cea.maeds@amrs.pt 

Resumo

O estabelecimento romano de produção de preparados piscícolas do Creiro, servido pelo fundeadouro da baía do Portinho da Arrábida, era constituído por diversas unidades fabris, das quais se escavou a G12. Desde 1987, tem sido objeto de escavações promovidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS). Estas deram a conhecer a planta completa de uma unidade fabril murada (G12) que incluía oficina de salgas (F14), “armazéns”, edifício provavelmente habitacional e balneário. 

Foram identificadas duas fases de laboração separadas por período de abandono. A primeira abrange a 2.ª metade do século I e o século II. A segunda fase de produção, presumivelmente da 2.ª metade do século IV e 1.º quartel do século V, reutilizou somente parte da Oficina F14, que já se encontrava em mau estado de conservação. Após o abandono da Fábrica G12, o local continuou a ser ocupado ao longo do século V, e os tanques de salga da Oficina F14 foram então reutilizados como vazadouro de lixos domésticos. 

 Abstract 

The Roman fish-processing factory of Creiro, directly connected with the small fishing harbour of Portinho da Arrábida, was integrated into the large navigable Sado estuary. It was located in perfect maritime relationship with the amphorae kilns and salt wetland, of the inner estuary, and with the Sado harbour complex. Creiro was made up of several fish-salting factories. In this paper the G12 factory will be presented. 

Since 1987, the site has been excavated by the Museum of Archaeology and Ethnography of the District of Setúbal (MAEDS). Those archaeological works revealed a complete plan of a walled factory (G12), which included the fish-salting workshop (F14), a row of warehouses, residential properties and bath houses. 

Two major phases of activity have been identified in the G12 fish processing unity separated by a phase of abandonment. The oldest remains of a fish products industry dates from the 2nd half of the 1st and 2nd centuries AD. The 2nd phase of activity occurred during the 2nd half of the 4th century and in the 1st quarter of the 5th. But in that period only some fish-salting tanks of the workshop F14 were used. After the abandonment of the G12 factory, the site remained occupied during the 5th century, and the salting tanks of the workshop F14 were reused as a dump of household waste. 

Fig. 1- Localização do sítio arqueológico do Creiro na Carta Militar Portuguesa. 

Fig. 2 – Vista do sul da baía do Portinho da Arrábida, indicando-se a localização do sítio arqueológico do Creiro (elipse de cor branca). 

1. Introdução

As escavações arqueológicas efetuadas no Creiro desde 1987 1, promovidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), permitiram identificar a planta completa de uma fábrica de preparados piscícolas da Época Romana. Além da oficina de produção de salgas e molhos de peixe, constituída por conjunto de tanques de salga, que designaremos por Oficina F14 (dada a conhecer em Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), foi construído, claramente associado a ela, um recinto murado que integrava compartimentos de armazenagem e provavelmente habitacionais, organizados em torno de um pátio, bem como um balneário. No exterior deste recinto, surgiram: um poço, aqueduto (?) e cisterna, e, contíguas ao muro sul do mesmo recinto, estruturas pertencentes a outra oficina de produção de salgas (Oficina K10). 

1 Realizaram-se por iniciativa do Parque Natural da Arrábida e foram coordenadas por Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares, coadjuvados por Júlio Costa e Jorge Domingos Costa, do MAEDS. Optou-se prioritariamente pela escavação em área, removendo a camada superficial (C.1) e, deste modo, pondo a descoberto o topo das principais estruturas arquitetónicas; em um segundo momento procedeu-se ao aprofundamento estratigraficamente orientado, escavando-se integralmente a oficina de produção de salgas F14, o balneário e o “Armazém” A2. A metodologia utilizada, bem como a quadrícula adotada foram as definidas aquando da primeira campanha (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987). 

O arqueossítio do Creiro ocupa pequena rechã (Figs. 1–3) com a cota de 25–30 m, formada por argilas do Paleogénico indiferenciado (Carta Geológica de Portugal, esc. 1:50 000, folha 38B-Setúbal), situada no sopé da encosta sul da Serra da Arrábida. Esta rechã é sobranceira ao troço oriental da praia do Portinho; é limitada a este e a oeste por vales por onde correm linhas de água e onde, localizada a oeste, existe importante nascente de água doce (Fonte da Paciência); as suas vertentes, onde afloram troços de muros atribuíveis à Época Romana, encontram-se muito erodidas e ravinadas. A zona central da jazida arqueológica possui as seguintes coordenadas: 38° 28’ 53.50’’N; 8° 58’ 36.48’’W. 

O estabelecimento da Época Romana abrangeria, pois, área superior à da atual rechã. É muito provável que essa ocupação não se restringisse à parte superior da mesma: ter-se-ia talvez estendido pela encosta até à praia, vencendo um desnível de aproximadamente 15 m. De facto, pelo teor da nota recolhida nos documentos inéditos deixados por A. I. Marques da Costa sobre o Creiro e na qual este arqueólogo alude a “alguns tanques de alvenaria em ruínas, forrados de uma camada de argamassa signina, [visíveis] na margem esquerda de uma linha de água que desce da Serra da Arrábida até ao mar, próximo deste e a leste do Portinho” (Tavares da Silva & Cabrita, 1964, p. 69), somos levados a pensar que tais testemunhos arquitetónicos se situariam no sopé sudoeste daquela rechã, no ponto onde o vale que a limita a poente encontra a praia. 

A riqueza piscícola, designadamente em sardinha, da costa meridional da Arrábida, as excelentes condições naturais de fundeadouro da abrigada enseada do Portinho e a existência de nascente de água doce teriam representado os principais factores responsáveis pela escolha do Creiro para a implantação de um núcleo fabril de produção de preparados de peixe. A própria enseada do Portinho oferecia, até há poucas décadas, excepcional riqueza e diversidade faunística em resultado principalmente do seu fundo se encontrar revestido por Zoostera. Além de moluscos e crustáceos, eram comuns peixes como a raia (género Raja), a enguia (Anguilla anguilla), o bodião (Lobrus bergylta e Symphodus melops), e nela entravam cardumes de peixe-rei (Atherina presbyter) e de juvenis de cavala (Scomber scombrus) e sardinha (Sardina pilchardus) 2

2 Informação pessoal do Dr. Miguel Henriques, coordenador do Museu Oceanográfico do Parque Natural da Arrábida, instalado na Fortaleza de Santa Maria, Portinho da Arrábida. 

2. Organização do espaço edificado. Estruturas arquitetónicas

A fábrica de produção de preparados piscícolas do Creiro que as nossas escavações puseram a descoberto será designada por Fábrica G12 (Fig. 4). Durante o Alto Império teria possuído planta retangular com a área estimada de ca. 730 m2. Era limitada a norte pelo muro (m.) 2 (Fig. 5) da Oficina F14 e, imediatamente a leste desta, pelo m. 25, ao longo do qual foi construído o Edifício H, formado por compartimentos (H1-H3, H6 e H7) de planta retangular; a nascente, pelo m. 26a, que representa o limite oriental de fiada de seis compartimentos (A1-A6) que designámos por “Armazéns”; a sul, pelo m. 27, onde se abria a entrada principal que dava acesso direto a um amplo pátio em torno do qual se organizavam as diversas instalações da fábrica. 

Fig. 4 – Creiro, 2015. Planta geral da área escavada. Levantamento de Jorge Domingos Costa e Júlio Costa. 

Fig. 5 – Creiro, 2015. Planta esquemática da área escavada, com a designação das unidades e elementos arquitetónicos. 

Em período indeterminado, o muro que, por hipótese, encerrava a Fábrica G12 a oeste teria sido destruído em grande parte (resta-nos o m. 1 da Oficina F14) para a construção de um balneário, cuja orientação geral difere completamente da das unidades arquitetónicas atrás referidas. 

A entrada principal da Fábrica G12 (Figs. 12 e 13), que se abria a meio do m. 27, com 2,35 m de largura, possuía uma soleira constituída por blocos aparelhados, lajiformes e paralelepipédicos, de biocalcarenito, o maior com 0,8 x 0,5 x 0,2 m e o menor com 0,35 x 0,25 x 0,2 m. Esta soleira vencia um desnível de 0,2 m e possuía a largura de 0,8 m. A entrada principal era, exteriormente, enquadrada por dois pilares de secção retangular (0,9 x 0,65 m), rebocados com argamassa de cal e areia, que suportariam um telheiro. Além deste vão, identificámos outros de acesso à Fábrica G12: no mesmo muro (27), 2,9 m para oeste da entrada principal, abria-se um vão com 1,2 m de largura que apresentava soleira provida, no exterior, de três degraus; no m. 26a, próximo do canto NE da fábrica, existiu, na fase inicial de construção, uma entrada com 1,45 m de largura, encerrada em fase tardia. 

No exterior da Fábrica G12, identificámos um poço (a NE), um aqueduto (?) e uma cisterna (a SW). 

Também no exterior, foi construído (a SE), no canto formado pelo m. 26b com o m. 27 o que, no atual estado da investigação sobre o Creiro, admitimos tratar-se de outra oficina de produção de preparados de peixe que designaremos por Oficina K10 (Fig. 13) e integraria outra fábrica. 

Fig. 6 – Creiro, 2015. Vista de nordeste da Oficina F14. Em último plano, a baía do Portinho da Arrábida. 

2.1. Oficina F14

Situada no limite norte da Fábrica G12, a Oficina F14 (Figs. 6 e 7) foi edificada sobre parte de um presumível aqueduto. 

A descrição pormenorizada desta oficina foi já publicada (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), pelo que aludiremos apenas a alguns aspetos que consideramos mais relevantes. 

Trata-se de um edifício de planta retangular (13 x 4,8 m), completamente murado, integrando onze tanques e um pátio aberto a sul através de vão com 1,4 m de largura. 

Os tanques distribuem-se por dois grandes grupos morfo-funcionais. O numericamente mais importante é o dos destinados à produção de salgas e/ou molhos de peixe (Tanques 1–5, 7–10), sendo quatro de planta subquadrangular (Tanques 1–3 e 7) e cinco sub-retangulares (Tanques 4, 5, 8, 9 e 10) (Quadro 1). As paredes e o fundo foram revestidos por uma espécie de “opus signinum” desprovido de cerâmica, ou seja, constituído por cal, areia e cascalho anguloso. Internamente, a junção das paredes entre si formam cantos arredondados, de tal modo que o Tanque 10 possui planta quase ovalada. A ligação das paredes com o fundo faz-se através de meia-cana saliente. 

O outro grupo morfo-funcional está representado pelos Tanques 6 e 11 que correspondem à 1.ª fase de remodelação da oficina; nestes, o pavimento do pátio da oficina foi reutilizado como fundo; os muros (ms. 22–24) então edificados, também revestidos por argamassa de cal, areia e cascalho anguloso, assentaram sobre o pavimento do pátio e adossaram-se à superfície rebocada das paredes dos tanques de salga, por conseguinte preexistentes. 

Os Tanques 6 e 11, o primeiro de planta subquadrangular e o segundo sub-retangular, são menos profundos que os destinados à produção de salga e o seu fundo menos impermeável que o destes; teriam desempenhado funções diferentes, podendo ter sido utilizados como reservatórios de sal. 

O pátio apresentava inicialmente planta em S, mas, logo que na 1.ª fase de remodelação o seu braço este foi ocupado pelo Tanque 6, ficou reduzido a uma planta em L. O pavimento é formado por calhaus sub-rolados que chegam a atingir 0,05 m de eixo maior, de calcário, ou, mais raramente, de brecha da Arrábida, argamassados com cal e areia. No braço oeste existe uma depressão em calote, com 0,5 m de diâmetro, revestida por opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Esta estrutura corresponde, por certo, a 2.ª fase de remodelação ocorrida na Fase II do funcionamento da Fábrica G12. Pertencente à mesma fase de remodelação, foi identificada no quadrado G14(g), sobre o topo destruído do muro que limita a Oficina F14 a sul, uma outra estrutura também em calote e igualmente revestida por opus signinum muito rico em cerâmica. A sua atribuição à 2.ª fase de remodelação, Fase II de utilização da fábrica, baseia-se nos factos de ter assentado no topo já muito destruído do muro sul (m. 4) da Oficina F14; de ter, em parte, coberto derrubes do mesmo muro; e de ser revestida por opus signinum muito rico em fragmentos de cerâmica (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6). 

Quadro 1 – Creiro, 2015. Oficina F14. Dimensões dos tanques utilizados na produção de preparados de peixe. 

Fig. 7 – Creiro, 2015. Planta da Oficina F14. 

Fig. 8 – Creiro, 2015. Oficina F14. Corte nos Tanques 1 a 5. 

Fig. 9 – Creiro, 2015. Planta do Edifício H e de troço de aqueduto (?) situado imediatamente a norte. 

2.2. Edifício H

Situada no limite norte da Fábrica G12, a Oficina F14 (Figs. 6 e 7) foi edificada sobre parte de um presumível aqueduto. 

A descrição pormenorizada desta oficina foi já publicada (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), pelo que aludiremos apenas a alguns aspetos que consideramos mais relevantes. 

Trata-se de um edifício de planta retangular (13 x 4,8 m), completamente murado, integrando onze tanques e um pátio aberto a sul através de vão com 1,4 m de largura. 

Os tanques distribuem-se por dois grandes grupos morfo-funcionais. O numericamente mais importante é o dos destinados à produção de salgas e/ou molhos de peixe (Tanques 1–5, 7–10), sendo quatro de planta subquadrangular (Tanques 1–3 e 7) e cinco sub-retangulares (Tanques 4, 5, 8, 9 e 10) (Quadro 1). As paredes e o fundo foram revestidos por uma espécie de “opus signinum” desprovido de cerâmica, ou seja, constituído por cal, areia e cascalho anguloso. Internamente, a junção das paredes entre si formam cantos arredondados, de tal modo que o Tanque 10 possui planta quase ovalada. A ligação das paredes com o fundo faz-se através de meia-cana saliente. 

O outro grupo morfo-funcional está representado pelos Tanques 6 e 11 que correspondem à 1.ª fase de remodelação da oficina; nestes, o pavimento do pátio da oficina foi reutilizado como fundo; os muros (ms. 22–24) então edificados, também revestidos por argamassa de cal, areia e cascalho anguloso, assentaram sobre o pavimento do pátio e adossaram-se à superfície rebocada das paredes dos tanques de salga, por conseguinte preexistentes. 

Os Tanques 6 e 11, o primeiro de planta subquadrangular e o segundo sub-retangular, são menos profundos que os destinados à produção de salga e o seu fundo menos impermeável que o destes; teriam desempenhado funções diferentes, podendo ter sido utilizados como reservatórios de sal. 

O pátio apresentava inicialmente planta em S, mas, logo que na 1.ª fase de remodelação o seu braço este foi ocupado pelo Tanque 6, ficou reduzido a uma planta em L. O pavimento é formado por calhaus sub-rolados que chegam a atingir 0,05 m de eixo maior, de calcário, ou, mais raramente, de brecha da Arrábida, argamassados com cal e areia. No braço oeste existe uma depressão em calote, com 0,5 m de diâmetro, revestida por opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Esta estrutura corresponde, por certo, a 2.ª fase de remodelação ocorrida na Fase II do funcionamento da Fábrica G12. Pertencente à mesma fase de remodelação, foi identificada no quadrado G14(g), sobre o topo destruído do muro que limita a Oficina F14 a sul, uma outra estrutura também em calote e igualmente revestida por opus signinum muito rico em cerâmica. A sua atribuição à 2.ª fase de remodelação, Fase II de utilização da fábrica, baseia-se nos factos de ter assentado no topo já muito destruído do muro sul (m. 4) da Oficina F14; de ter, em parte, coberto derrubes do mesmo muro; e de ser revestida por opus signinum muito rico em fragmentos de cerâmica (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6). 

2.3. “Armazéns”

Os seis compartimentos (A1-A6) que designámos por “Armazéns” (Figs. 10 e 11) possuem planta retangular e dimensões muito semelhantes entre si: o comprimento oscila entre 4,3m e 4,6 m e a largura entre 1,9 m e 2,6 m. Este conjunto arquitetónico é limitado a nascente pelo m. 26a (0,55 m de espessura), cuja extremidade sul se adossou ao m. 27 e cujo prolongamento para sul é o m. 26b, muros que pertencem à Oficina K10; a sul, pelo m. 27 (0,55 m de espessura); a oeste pelo m. 31 (0,55 m de espessura) e a norte pelo m. 30 (0,55 m de espessura). Os ms. 26a, 30, 31 bem como os que separam os compartimentos oferecem aparelho idêntico ao dos muros do Edifício H e diferente do dos ms. 26b e 27 (da Oficina K10), cujos paramentos são constituídos por blocos de maiores dimensões semi-aparelhados e, em geral, sem blocos mais pequenos entre eles. 

Os “armazéns” comunicam diretamente com o pátio da Fábrica G12 através de vãos abertos no m. 31. 

Somente o “Armazém” 2 foi objeto de escavação em profundidade, verificando-se que  o que resta das suas paredes conserva uma altura compreendida entre 0,10 m (m. 31) e 0,5 m (m. 26a). O pavimento era constituído por camada (ca. 0,05 m de espessura) de blocos com ca. 0,05 m de dimensão máxima ligados por argila. 

O topo do edifício dos “armazéns” separava-se dos Compartimentos H4 (3,6 m x 2,5 m) e H5 (2,4 m x 2,15 m), construídos ao longo do m. 25, por um corredor (1,5 m de largura) de orientação E-W, que, numa primeira fase, abria para o exterior da Fábrica G12 por vão (1,5 m de largura) existente no m. 26a. Este vão foi encerrado em época tardia. O corredor infletia ortogonalmente para sul no Q. I-J/15, indo desembocar no pátio da Fábrica G12. 

Fig. 12 – Creiro, 2015.

Entrada da Fábrica G12, vista de sul:

1– Soleira;

2 – Base de pilares que suportariam um telheiro;

3 – Pátio central. 

Fig. 10 – Creiro, 2015. Aspeto da Fábrica G12. Fotografia obtida de sudeste. 1 – Pátio central; 2 – “armazéns”. 

Fig. 11 – Creiro, 2015. Planta do poço e da área dos “armazéns”. 

2.4. Oficina K10

A Oficina K10 (Fig. 13), muito incompletamente escavada em área, e sem qualquer intervenção arqueológica em profundidade, integraria uma outra fábrica de produção de preparados de peixe, cuja construção foi anterior à da Fábrica

G12, pois, como vimos anteriormente, além das diferenças de aparelho, a extremidade sul do m. 26a (pertencente à Fábrica G12) adossou-se ao m. 27. Este muro tornou-se comum a ambas as fábricas quando da construção da G12. A Oficina K10 é limitada a norte pelo m. 27, a este pelo m. 26b e a oeste pelo m. 55; o muro sul não foi ainda posto a descoberto. 

Organizar-se-ia a partir de um pátio limitado a este pelo m. 26b e possuía tanques subquadrangulares (2,4 x 2,1 m), e retangulares, compridos e estreitos (5,3 x 1,2 m e 4,9 x 1,2 m). 

Fig. 13 – Creiro, 2015. Planta da área da entrada da Fábrica G12 e da Oficina K10. 

2.5. Balneário

A planta do balneário (Fig. 14) apresenta-se incompleta: encontra-se destruído a sul do hipocaustum, em resultado da erosão e da implantação recente de construções clandestinas. Compreende um vestíbulo/apodyterium (B1), uma sala de planta circular (B2), que poderia funcionar igualmente como apodyterium; um frigidarium (B3) com tina forrada a mármore; três compartimentos aquecidos providos de hipocaustum (B4, B5 e B6) e compartimento de apoio à fornalha (B7). 

Os muros do balneário, incluindo os do hipocaustum (com excepção dos do Compartimento B2) oferecem aparelho que obedece ao mesmo modelo: blocos pétreos semi-aparelhados, paramentos regulares e argamassa de cal e areia. 

O vestíbulo (B1) é uma comprida e estreita sala de planta em L (6,6 x 2,6/3,6 m), de orientação NW-SE que comunica com o exterior através de um vão aberto na sua parede SE (m. 61). É pavimentado a opus signinum pouco consistente e rico em fragmentos de cerâmica. Adossado às paredes NE (m. 62) e NW (m. 63) existe um banco constituído por taipa forrada superiormente por tijoleiras e, lateralmente, por reboco de cal e areia. 

Junto do muro SE (m. 61) surgiu, sobre o pavimento, uma acumulação de pequenos (20 x 25 x 20 mm) fragmentos de cerâmica de construção que se destinariam à preparação de opus signinum. 

O vestíbulo comunica a NE com o Compartimento B2, talvez utilizado também como apodyterium, através de um vão com 0,1m de largura, provido de soleira de calcário bem aparelhado e com orifício para encaixe do gonzo da porta. Esta sala tem planta circular (5,4 m de diâmetro interno); a parede que a limita é formada por blocos de calcário mal aparelhados ligados por argila e revestida internamente por reboco de cal e areia; o pavimento é de opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. 

A partir do vestíbulo tem-se ainda acesso ao frigidarium (B3) através de vão (0,85 m de largura) aberto no m. 69. Este compartimento, com 4,8 m por 3,6 m, possui pavimento de opus signinum com fragmentos de cerâmica de reduzidas dimensões. Na base das paredes, no contacto com o pavimento, existe meia-cana saliente de opus signinum. No lado SE tinha-se acesso, através de dois degraus, a uma tina de planta retangular (1,5 x 1,75 m, internamente) revestida por placas de mármore assentes sobre camada de argamassa que, por sua vez, cobre um revestimento de opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Estão bem patentes duas fases de construção. Assim, os seus muros SE (m. 65) e SW (m. 66) apresentam a seguinte estrutura (do exterior para o interior da tina): muros primitivos, com espessuras de 0,6 m, constituídos por blocos de calcário mal aparelhados ligados por argamassa de cal e areia; reboco de cal e areia com 15 mm de espessura que revestia esses muros; blocos de calcário não aparelhados e ligados por argamassa (espessura 0,13 m); revestimento de opus signinum (0,04 m de espessura), contendo numerosos fragmentos de cerâmica; camada de argamassa sobre a qual assentaram as placas de mármore que, na última fase, revestiram o interior da tina. 

Fig. 14 – Creiro, 2015. Planta do Balneário. 

Fig. 15 – Creiro, 2015. Balneário. Aspeto do hipocaustum (Compartimento B5). Fotografia obtida de noroeste, a partir do interior do Compartimento B7 (sala de apoio à fornalha). 

O frigidarium comunica, por dois vãos abertos na sua parede NW (m. 70), com a zona aquecida do balneário, de que restam três salas (B4, B5 e B6). Estas abrangiam a área total de 34 m2 e reduzem-se ao hipocaustum (Fig. 15), que possuía pavimento de tijoleira. As suspensurae, já desaparecidas, eram suportadas, no Compartimento B5, por pilares de tijolo, de secção retangular (0,35 x 0,20 m) e quadrangular (0,20 m de lado), organizados em cinco fiadas de orientação NE-SW com quatro pilares cada uma; e nos Compartimentos B4 e B6 por estruturas, também de tijolo, em arco. 

O Compartimento B7 correspondia ao praefurnium. De planta retangular (3,9 x 2,9 m), o seu pavimento é constituído pela rocha cortada e afeiçoada e encontra-se ao nível do pavimento  do hipocaustum; comunica com o B6 através de fornalha de cano simples (Reis, 2004, Fig. 9), com 1,8 m de comprimento por 0,85 m de largura, de cobertura em arco de tijolo. 

Acedia-se ao Compartimento B7 por escada de alvenaria adossada à superfície interna da parede NE (m. 69), que venceria um desnível de 1,1m; conservou-se o degrau inferior, assente sobre um embasamento de planta retangular (1,83 x 0,66 m) e 0,45 m de altura, construído com blocos pétreos não aparelhados e fragmentos de tijoleira ligados por argila. 

As paredes deste compartimento conservam a altura de 1,98 m e têm 0,45 m de espessura. Na parede SE (m. 73), comum ao Compartimento B5, existe uma abertura muito destruída, detetando-se os restos de um arco de tijolo, por onde o ar quente do praefurnium passaria para o hipocaustum daquele compartimento. 

No exterior do balneário, confinando com o seu lado NW (m. 72), à cota de 9,09 m (o pavimento do frigidarium tem de cota 7,76 m e o piso do hipocaustum, ca. 6.6 m), e na direcção da fornalha, registou-se a base do que poderia ter sido um reservatório de água; de planta trapezoidal (2,5 m de comprimento conservado por 1,70/1 m de largura), era revestido por opus signinum, contendo numerosos fragmentos de cerâmica. Este revestimento formava três camadas sobrepostas. 

Fig. 16 – Creiro, 2015. Balneário. Escavação na área do Compartimento B1: Conduta α (1), cortada, em momento de época indeterminada, pela Conduta λ (3); 2 – Conduta β. 

Fig. 17 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B1: 1– Conduta α, conservando o arco da abóbada subjacente ao Compartimento B3; 2 – Conduta λ. 

2.6. Sistema hidráulico

No exterior da Fábrica G12, próximo do seu canto NE (Q. J16), surgiu a boca de um poço (não escavado em profundidade), circular, com 1,8 m de diâmetro interno e muro (0,55 m de espessura) de blocos não aparelhados, de calcário e biocalcarenito, ligados por argila. Ao lado oriental deste muro adossa-se uma estrutura de planta trapezoidal, incompletamente escavada em superfície e profundidade, com 1,8 m de comprimento atual e 1/1,2 m de largura, que pode ter sido um tanque ou a abertura do acesso ao poço se este for de mergulho (Fig. 11). 

A l,6 m do poço, para oeste, existe uma estrutura retangular, comprida e estreita (6,6 m de comprimento por 0,85 m de largura interna) limitada por muros de blocos de calcário e biocalcarenito unidos por cal e areia e de aparelho semelhante ao dos muros 26b e 27. Esta estrutura prolonga-se para oeste, sem aparentes soluções de continuidade, por extradorso de abóbada de berço construída com pequenos blocos ligados por abundante argamassa; tem ca. 1m de largura e estende-se por 7,2 m até atingir o muro nascente (m. 3) da Oficina F14, sob a qual continua para oeste. Estaremos perante o aqueduto que conduzia a água do poço para a cisterna? Seria anterior à implantação da Fábrica G12, visto ter sido coberto pela Oficina F14 e (parcialmente) pelo m. 25 que limita a fábrica a norte. É muito possível que este presumível aqueduto se prolongue pela conduta identificada em 1987 através de profundo rombo no pavimento do braço oeste do pátio da Oficina F14. Verificámos então tratar-se do troço de uma canalização, de direção NE-SW, com 0,5 m de largura e 0,6 m de altura que, passando sob aquela oficina, prosseguia para além dela a partir do seu canto SW (Q. E13). O fundo e a parte inferior das paredes (até à altura de 0,35 m) eram revestidos por “opus signinum” sem fragmentos de cerâmica. Possuía meia cana saliente na ligação do fundo com as paredes (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, p. 228). 

Nos Qs. E/13-12, ao escavarmos em profundidade o Compartimento B1 do balneário, pusemos a descoberto três condutas, que designámos por Alfa, Beta e Gama (Figs. 14, 16 e 17). A primeira, que canalizava água para a cisterna, passava sob os Compartimentos B1 e B3 do balneário e talvez fizesse parte do sistema hidráulico a que teria pertencido a estrutura abobadada anteriormente referida bem como a conduta observada em 1987 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 227–228). Observámo-la numa extensão de 0,8 m (orientação N-S). Com 1 m de altura e 0,4 m de largura interna, possui as paredes (0,65 m de altura) constituídas por blocos em geral com 0,1 m de dimensão máxima, não aparelhados e ligados por argamassa de cal e areia; o fundo, revestido por “opus signinum”, sem cerâmica; meias-canas salientes na ligação das paredes com o fundo; abóbada de tijolo (só observada sob o frigidarium, já que na área do vestíbulo foi totalmente destruída). Esta conduta teria sido desativada, se não antes, pelo menos quando da construção da Conduta γ, que a cortou transversalmente (Fig. 17). 

De secção interna retangular (0,27/0,35 m de largura; 0,1 m de altura), a Conduta β (Fig. 16) foi construída com tijoleiras que formam o fundo, as paredes e a cobertura. Observámo-la numa extensão de 1,55 (orientação NW-SE). 

A Conduta γ tem, igualmente, secção interna retangular (0,18 m de largura e 0,1 m de altura) e é constituída também por tijoleiras. O troço posto a descoberto, de orientação W-E, desembocava na Conduta β (Fig. 16). 

As Condutas β e γ poderiam ter servido para escoar as águas do balneário. 

A cisterna situa-se imediatamente a sul do Compartimento B3 do balneário. Não foi objeto de qualquer escavação arqueológica. Localizada no cimo da encosta que desce para a praia, a erosão que sobre ela tem atuado pôs parcialmente a descoberto os seus muros laterais Estes conservam ainda, nas suas extremidades setentrionais, restos do arranque de abóbada; eram revestidos por “opus signinum” sem fragmentos de cerâmica, mas sim com pequenos calhaus rolados (dimensão máxima inferior a 1 cm). 

3. Contextos estratigráficos e cronologia

Durante a 2.ª metade do século I e no século II, a Oficina F14 teria funcionado de modo pleno. Em momento indeterminado deste último século, pelo menos parte dos tanques (os 6 e 7 comprovadamente) são desativados, bem como o “Armazém” 2 (o único até agora integralmente escavado). Encerra-se, assim, a primeira fase do funcionamento da Fábrica G12. 

A desativação da Oficina F14, no século II, parece-nos plausível se atendermos à quase ausência de ânforas piscícolas cronologicamente situadas entre as primeiras décadas do século III e meados do séculos IV, como a Almagro 50 ou a Almagro 51c, var. B. Teria provavelmente voltado a funcionar durante o Baixo Império, talvez a partir de meados do século IV. A construção de uma cuvette de limpeza do pátio, em opus signinum rico em fragmentos de cerâmica, e de uma outra igualmente de opus signinum do mesmo tipo, que foi assentar sobre o topo do m. 4, já então arruinado, bem como sobre parte dos derrubes do mesmo muro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6), testemunham a laboração desta oficina durante o Baixo Império. O seu definitivo encerramento teria ocorrido na passagem do século IV para o V, se aceitarmos esta cronologia para a presença em nível de abandono e derrube de telhado do Tanque 3 (C.4) da forma Hayes 73 A (Silva, 2010), após o que, e ao longo do século V, alguns tanques, ao mesmo tempo que entram em ruinas, são reutilizados como vazadouro de lixos domésticos (Fase IIB). 

3.1. Oficina F14

Elementos relativos à cronologia da plena atividade e dos primeiros derrubes da Oficina F14 foram já apresentados em Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987. 

Contexto A (Quadro 2). – Os Tanques 6 e 7 teriam sido definitivamente desativados no final da Fase I. Com efeito, formou-se em ambos, sobre o fundo, um nível de abandono (C.3), de areia argilosa castanho-avermelhada, embalando, no primeiro, terra sigillata hispânica, forma Drag. 27, de variante integrável na época de Trajano (Bustamante, 2013, p. 97, Fig. 55), e ânfora Dressel 14 de produção regional, e, no Tanque 7, terra sigillata sudgálica, forma Drag. 18B (Genin, 2007, p. 323), datada por esta autora de 20/30 a 112/120; terra sigillata hispânica, formas Drag.15/17, variante C de Bustamante, que surge na Época Flávia e se desenvolve amplamente durante o século II (Bustamante, 2013, p. 84, Fig. 39), e Drag. 27 (Fig. 23, n.os 1 e 2). 

Sobre essa camada de abandono, repousava um nível com numerosos imbrices, correspondente ao derrube do telhado, sobreposto por blocos de calcário resultantes da queda da parte superior das paredes dos tanques (Fig. 18). 

Quadro 2 – Creiro, 2015. Contextos arqueológicos considerados no presente estudo. 

Fig. 18 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 7. Perfil oeste do enchimento. A C.3 (publicada em 1987 como C.2), era um nível de abandono e continha terra sigillata sudgálica, na forma Drag, 18, e hispânica, nas formas Drag. 15/17 e 27. 

Fig. 19 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 3. Perfil norte do enchimento. A C.4, nível de derrube de telhado de imbrices, continha terra sigillata africana D, Hayes 73A. 

Contexto D. – Os Tanques 1 e 3 (Fig. 19) possuíam, assente no fundo (que se encontrava bem conservado), nível de derrube do telhado. Esta camada continha terra sigillata africana D, forma Hayes 73A (Camada 4 do Tanque 3 – Fig. 24, n.º 3) e ânforas Almagro 51c, var. C (Fig. 27, n.º 1) e Sado 2 (C. 2 do Tanque 1), datadas na olaria do Pinheiro, a primeira da 2.ª metade do século IV e do século V, e a Sado 2 dos finais do século IV e século V (Mayet & Tavares da Silva, 1998). A forma Hayes 73A de terra sigillata africana D é datada por Hayes (1972, p. 124) de 420 a 475, mas, como nota A. P. Magalhães da Silva (2010, p. 60) tem integrado contextos dos finais do século IV, prolongando-se pelo século seguinte. Assim, a cronologia do final da atividade produtiva da Oficina F14, e se atendermos, como veremos seguidamente, à sequência geral aí observada, poderá situar-se entre os finais do século IV e o 1.º quartel do século V. 

Contexto E (Quadro 2). – Os Tanques 2 (Fig. 20) e 4 apresentavam sobre o fundo, em geral mal conservado, nível formado por derrubes e pela acumulação de lixos domésticos que continham os seguintes materiais datantes: terra sigillata africana D, formas Hayes 61B, 76 e 91B (Fig. 24, n.os 1, 4 e 6); ânforas de fabrico regional, das formas Almagro 51c, var. C (Fig. 27, n.os 2–3), Almagro 51 a–b (Fig. 27, n.os 4–5), Sado 1, var. B (Fig. 27, n.º 6) e Sado 2 (Fig. 27, n.º 7); ânforas das formas Keay XXVII B (Fig. 27, n.º 8) e Keay XXXV B (Fig. 27, n.º 9). 

A terra sigillata africana representada nestas lixeiras indica uma cronologia centrada no intervalo compreendido entre o 2.º e o 3.º quartéis do século V: Bonifay (2004, pp. 171, 179) data a Hayes 61B de 400–450 e a Hayes 91B de meados do século V; a Hayes 76 é datada por Hayes (1972, p. 125) de ca. 425–475. No que se refere à cronologia das ânforas, na olaria do Pinheiro, as formas Sado 1, var. B, Almagro 51c, var. C, Almagro 51 a–b e Sado 2, embora remontem a sua origem, na mesma olaria, as duas primeiras à 2.ª metade do século IV e as duas últimas aos finais do mesmo século, prolongam-se plenamente pelo século V (Mayet & Tavares da Silva, 1998). Por outro lado, as ânforas Keay XXVII B e Keay XXXV B são características do século V: a XXVIIB da primeira metade e a XXXV B dos dois primeiros terços desse século (Bonifay, 2004, pp. 132, 135). 

Como atrás dissemos, a Oficina F14, uma vez abandonada, transformou-se em depósito de lixos domésticos (Contexto E), em uso, provavelmente, até ao 3.º quartel do século V. Deste modo, consideramos que com a desativação da Oficina F14, a Fábrica G12, no seu conjunto, perdeu igualmente a valência produtiva associada aos preparados piscícolas, mas o espaço continuou a ser habitado com carácter doméstico e agropastoril (atenda-se à presença, neste horizonte, de Bos taurus, de acordo com estudo arqueozoológico da autoria de Cleia Detry), ao longo do século V (Fase IIB). 

Fig. 20 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 2. Perfil oeste do enchimento. A C.2 era um nível de derrubes e lixeira, contendo terra sigillata africana D nas formas Hayes 61B, 76 e 91B; ânforas Almagro 51c, variante C; Almagro 51 a–b; Sado 1, variante B; Sado 2; Keay XXVIIB e Keay XXXVB e abundante cerâmica comum. 

Fig. 21 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B1. Perfil noroeste dos Qs. E12-E13. A C.3, nível de derrube de paredes e telhado de imbrices, continha ânfora Almagro 51C e assentava no pavimento (C.4) do compartimento. A C.6 era uma formação coluvionar e continha terra sigillata africana A, Hayes 14 B; ânforas Beltrán II e Dressel 14, variantes B e C; repousava sobre o substrato geológico (C. 7). 

3.2. “Armazém” 2

Contexto B (Quadro 2). – O “Armazém” 2 foi, até ao presente, o único escavado em profundidade.

Sob a C.1, aflorou um nível de derrube de telhado, com numerosos fragmentos de imbrices (C. 2A) e escassos artefactos datantes: terra sigillata hispânica atribuível à forma Drag. 15/17. Esta camada repousava em um nível de abandono (C. 2B), assente no pavimento do compartimento, que continha terra sigillata hispânica (forma indeterminada) e ânfora Dressel 28 (Fig. 23, n.º 12), de pasta francamente micácea e acastanhada, não tendo sido certamente produzida no Baixo Sado. Esta ânfora, relativamente rara em jazidas portuguesas (Banha & Arsénio, 1998, pp. 170–171; Almeida & alii, 2014, Fig. 2), foi produzida na Tarraconense, na Bética e em França entre o final do século I a.C. e a primeira metade do século II (Peacock & Williams, 1986, pp. 149–150); na olaria do Pinheiro, ocorre em contexto do final do século II/inícios do século III, associada à Dressel 14 tardia e à Almagro 51c, var. A (Mayet & Tavares da Silva, 1998). 

A função como armazém deste compartimento está documentada pela exumação na C. 2B de pesos de rede (em chumbo — Fig. 23, n.º 14 —, cerâmica — Fig. 23, n.º 13 — e em concha de Glycimeris glycimeris perfurada no vértice) e de numerosos e grandes fragmentos de duas talhas (Fig. 23, n.º 10) que, pelas suas dimensões, deveriam, quando inteiras, ocupar grande parte da área do armazém. 

O “Armazém” 2 teria sido abandonado (definitivamente) em momento indeterminado do século II. 

3.3. Balneário

Contexto C (Quadro 2). – O pavimento do Compartimento B1 (vestibulum/apodyterium) assentava sobre camada (C. 5), talvez de enchimento e regularização que foi colmatar a vala aberta para receber a Conduta β (Fig. 21). Este nível revelou-se infértil quanto a artefactos datantes. Já a camada imediatamente subjacente (C. 6), de origem coluvionar, continha artefactos exclusivamente do Alto Império, em que a cronologia dos mais recentes — 2.ª metade do século II (terra sigillata africana A, forma Hayes 14B — Fig. 23, n.º 3 —, associada a ânfora Dressel 14, var. C, de fabrico regional, Fig. 23, n.º 11) — representa o terminus post quem para a construção daquele pavimento, de opus signinum com numerosos e grandes fragmentos de cerâmica. 

O pavimento (C.3) do Compartimento B3 (frigidarium), também de opus signinum, mas com fragmentos de cerâmica menos numerosos e de reduzidas dimensões, repousava sobre nível (C.4) sedimentologicamente muito semelhante à C.6 do Compartimento B1, tendo fornecido igualmente artefactos pertencentes somente ao Alto Império (terra sigillata sudgálica e ânforas Dressel 14 de produção regional). Esta C.4 cobria a abóbada da Conduta α. 

No estado atual da investigação sobre o Creiro não é possível determinar a data de construção destas salas, em particular, e do balneário, em geral. Este estaria em obras de remodelação quando foi definitivamente abandonado. Com efeito, atenda-se às acumulações de fragmentos de cerâmica de construção destinados, por certo, à obtenção de opus signinum, que repousavam sobre os pavimentos dos Compartimentos B1 e B2. 

Contexto F (Quadro 2). – A C.4 dos Compartimentos B5 (Fig. 22) e B6, nível com 0,1 m de espessura, de areia argilosa rosada/bege com manchas cinzentas ricas em carvão, que assentava no pavimento, de tijoleiras, do hipocaustum, e que pode corresponder aos últimos momentos da atividade do balneário, continha terra sigillata africana D, forma Hayes 61B (variantes B1 e B2 de Bonifay, datadas por este autor da 1.ª metade do século V — Bonifay, 2004, p. 171). 

Contexto G (Quadro 2). – As camadas de derrube (C.2 dos Compartimentos B2 e B3 e Cs. 2 e 3 dos Compartimentos B1, B4, B5, B6 e B7 — Figs. 21–22) marcam o abandono definitivo do balneário; forneceram terra sigillata africana D (Fig. 24), Hayes 61 B, 64, 73 A, 80 A e 91 B, e ânforas Almagro 51c, var. indeterminada, Almagro 51 a–b e Sado 1, var. B (Fig. 29). Estas ânforas, como atrás referimos, embora ocorram igualmente em contextos do século IV, abrangem o século V. No que respeita à terra sigillata africana D, o século V está bem documentado pela presença das formas Hayes 61 B (1.ª metade desse século — Bonifay, 2004, pp. 170, 171), Hayes 64 (2.ª metade — Hayes, 1972, p. 111), 80 A (meados e 2.ª metade — Bonifay, 2004, p. 173) e Hayes 91B (meados — Bonifay, 2004, p. 179). 

Fig. 22 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B5. Perfil nordeste do hipocaustum. A C.4, rica em cinzas e carvões, parece corresponder aos últimos momentos de funcionamento do balneário; era sobreposta por níveis de derrube dos pilares (C.3) e do pavimento (C.2) do Compartimento B5. 

Quadro 3 – Creiro, 2015. Cerâmica comum.

* Pasta micácea, cor negra e produção manual. 

 

4. Conclusões

As escavações arqueológicas que o MAEDS efetuou no Creiro permitiram identificar uma unidade fabril de salga de peixe da época romana não reduzida à oficina de produção propriamente dita, mas integrando, para além desta, outras instalações quer ligadas à armazenagem (de sal e outras produtos que entrariam na preparação das salgas e molhos; de ânforas vazias ou já repletas de preparados piscícolas a aguardar embarque a partir da baía do Portinho da Arrábida…) quer com caráter habitacional e/ou administrativo (Edifício H). Pôs-se ainda a descoberto elementos de um sistema hidráulico (poço, condutas de água e cisterna) e um balneário. 

A atividade produtiva do Creiro não se limitava à desenvolvida na Fábrica G12, pois existiriam outras unidades de produção, como a Oficina K10, cuja escavação iniciámos, as quais poderiam ser também servidas pelo sistema hidráulico e pelo balneário identificados. 

Esta reunião de diversas valências funcionais em uma só unidade fabril parece contrastar com o observado em outros complexos “industriais”, como o de Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006) onde, por hipótese, os armazéns e a administração correspondentes a diversas oficinas de produção estariam concentrados em local separado da área produtiva. Esta diferenciação entre a produção e a comercialização foi igualmente sugerida por Etienne & Mayet (2002, p. 104) para a organização de pequenos estabelecimentos de fabrico de salga de peixe de Almuñecar datados da Época Púnica. 

Uma das mais prementes questões que podemos colocar sobre a Fábrica G12 (na sua fase alto-imperial), prende-se com o regime de propriedade. Seria estatal ou privada? O facto de a fábrica se encontrar murada, confinando com outra(s) igualmente murada(s) e possuir um edifício provavelmente com funções habitacionais e/ou administrativas parece sustentar a hipótese da propriedade privada (Etienne & Mayet, 2002, p. 105). A escavação em profundidade do Edifício H, se se vier a confirmar o seu caráter habitacional, poderá fornecer-nos elementos que permitam determinar o estatuto socioeconómico dos seus habitantes. 

A Fábrica G 12 revela duas fases de funcionamento. A primeira ter-se-ia iniciado no 3.º quartel do século I (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987) e concluído em momento indeterminado do século II, período durante o qual funcionou plenamente, tendo utilizado como ânfora piscícola a Dressel 14. 

A segunda fase teria começado, presumivelmente, na 2.ª metade do século IV e terminado no 1.º quartel do século seguinte. Com esta segunda fase (IIA) teria ocorrido a redução da área de funcionamento fabril, situação verificada em outros estabelecimentos de preparados de peixe, como a Oficina A do Largo João de Deus, em Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006). 

Durante o 2.º e 3.º quartéis do século V, o local, com a fábrica já desativada, continuou a ser ocupado, pelo que alguns tanques da Oficina F14 são então reutilizados como vazadouro de lixos domésticos (Fase IIB). 

A imagem que nos chega do ambiente edificado existente na segunda dessas fases é de grande degradação. Só parte da oficina, já meio arruinada (ver Corte B, de 1987 — Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6), é reativada; o “Armazém” 2 (o único escavado em profundidade) encontrava-se abandonado. O Creiro não é um caso isolado no que respeita a essa imagem de degradação datada da 2.ª metade do século IV e do século V. Por exemplo, nas últimas fases da unidade de preparados de peixe da Casa do Governador da Torre de Belém (Lisboa), enquanto “boa parte da fábrica se encontraria destelhada e, portanto, destinada a outros usos que não a sua primitiva função ou simplesmente abandonada”, alguns tanques “estariam ainda dedicados à produção de preparados de peixe” (Filipe & Fabião, 2006–2007, p. 113). 

O balneário é definitivamente abandonado também no século V. 

Durante a segunda fase, as ânforas mais utilizadas para conter os preparados de peixe produzidos na Fábrica G12 são a Almagro 51c, var. C, a Almagro 51 a–b e a Sado 1, var. B, tal como em Tróia, onde estas formas representam “ a tríade típica dos níveis tardios” (Almeida & alii, 2014, p. 419). Chegam ao Creiro, na mesma fase, ânforas importadas (Keay XXVII B e Keay XXXV B), juntamente com terra sigillata africana. 

Fig. 23 – Creiro, 2015. Fase I. Contextos A (n.os 1, 2, 4 e 6), B (n.os 5, 7–10 e 12–14) e C (n.os 3 e 11). Terra sigillata sudgálica (n.º 1), hispânica (n.º 2) e africana A (n.º 3); cerâmica comum (n.os 4–10); ânfora Dressel 14 (n.º 11) e Dressel 28 (n.º 12); pesos de rede em cerâmica (n.º 13) e em chumbo (n.º 14)

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

Fig. 24 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 3), E (n.os 1, 4, 6 e 7) e G (n.os 2, 5, 8–9). Terra sigillata africana D: Hayes 61B (n.os 1 e 2), 73A (n.º 3), 76 (n.º 4), 80A (n.º 5), 91B (n.º 6) e com decoração estampada (n.os 7–9).

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

Fig. 25 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 6) e E (n.os 1–5, 7–9). Cerâmica comum. Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

 

Fig. 26 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 7) e E (n.os 1–6, 8 e 9). Cerâmica comum. Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

 

O estabelecimento do Creiro integrava certamente o importante centro fabril de preparados piscícolas do Baixo Sado, dominado por Caetobriga (Setúbal e Tróia), onde, na produção de salgas de peixe e dos contentores que as transportavam, estão bem patentes as duas fases representadas no Creiro. De notar, porém, que enquanto em Tróia (Etienne & alii, 1994), bem como nas olarias romanas do Sado (Mayet & Tavares da Silva, 1998, 2002), a segunda fase, de profunda reestruturação, ocorre logo a partir do século III, no Creiro parece iniciar-se somente na 2.ª metade do século IV, à semelhança do que teria acontecido na Travessa de Frei Gaspar, em Setúbal, onde a oficina de produção de salga de peixe é reativada, parcialmente, nunca antes da 2.ª metade do século IV/século V (Tavares da Silva & alii, 1986). 

A fundação do complexo fabril do Creiro, aparentemente isolado na faixa costeira da Serra da Arrábida, quando um pouco mais a montante existia o grande centro produtor de Setúbal e Tróia, é explicável numa lógica de comunicação aquática e de exploração sistemática e exaustiva de um território colonizado. Seria, assim, impensável desperdiçar os recursos naturais da baía do Portinho da Arrábida que comportavam desde a riqueza piscícola às excecionais condições de caráter portuário. A mesma lógica teria presidido, aliás, à criação do rosário de pequenos estabelecimentos fabris que integravam, além do Creiro, a Comenda, a Rasca e Sesimbra. 

Fig. 27 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n. 1) e E (n. os 2–9). Ânforas: Almagro 51c, var. C (n.os 1–3); Almagro 51 a–b (n.os 4–5); Sado 1, var B (n.º 6); Sado 2 (n.º 7); Keay XXVII B (n.º 8); Keay XXXV B (n.º 9). Desenhos de Ana Castela. 

Fig. 29 – Creiro, 2015. Fase II. Contexto G. Cerâmica comum (nos 1–11) e ânforas: Sado 1, var. B (n.º 12) e Almagro 51a–b (n.º 13).

Desenhos de Ana Castela. 

 

Fig. 28 (à esquerda)– Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B5. Elementos tubulares em cerâmica provenientes da C. 3 (derrubes dos pilares das suspensurae) – n.os 1 e 2 – e da C. 4 (derrubes finos, entre os pilares das suspensurae) – n.º 3.

Desenhos de Ana Castela. 

 

Creiro (Arrábida): um estabelecimento de produção de preparados de peixe da Época Romana

Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares
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Roman influence on the Sado

Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado

Introdução. Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado

 Caetobriga. O sítio arqueológico da Casa dos Mosaicos (Setúbal Arqueológica, Vol . 17, 2018), p. 11-42

Joaquina Soares - Carlos Tavares da Silva

 Introdução

Até às intervenções de arqueologia urbana desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), no âmbito do projecto de investigação sobre as preexistências de Setúbal, a partir de meados dos anos 70 do século XX, o paradigma dominante situava Caetobriga em Tróia. As ruinas de uma cidade antiga na margem esquerda da foz do Sado, que André de Resende (1593) visitou e muito provavelmente baptizou de Tróia no ambiente renascentista da segunda metade de quinhentos (quiçá por inspiração dos textos homéricos), seriam igualmente motivação, em pleno Romantismo, para a fundação, em Setúbal, da Sociedade Archeologica Lusitana com o propósito da escavação e estudo daquela jazida e da criação de museu monográfico.

 De entre o numeroso espólio móvel que foi sendo exumado das “ruínas” de Tróia, durante as escavações antigas, reproduzimos aqui a ânfora Dressel 14 publicada por Gama Xaro em 1860, no Archivo Pittoresco (Fig. 1) e a taça de prata então depositada na residência do duque de Palmela (Fig. 2), publicada no vol. I dos Annaes da Sociedade Archeologica Lusitana, p. 4-8, a que foi atribuída significado religioso, face à presença de decoração relevada com figuras mitológicas “vermiculadas de ouro” (SAL, 1851, p. 19), em que se destacam elementos marinhos e o tridente associado a Neptuno. Teria pertencido ao conteúdo de “um pequeno caixão de chumbo” posto a descoberto pela erosão fluvial no inverno de 1814.

 “Na margem esquerda do Sadão, e não longe da foz do mesmo, jazem dispersas as ruinas de uma cidade, que os antiquários suppõem ser a antiga Cetobriga. Não é possível andar por entre aquellas ruinas; achar alli com pasmosa facilidade moedas romanas; vêr na extensão de quasi uma legoa os destroços dos edifícios; encontrar agora fragmentos de amphoras; logo lâmpadas de barro; aqui troços de marmore; acolá vasos de diferentes feitios; não é possível, dizemos nós, vêr, examinar e estudar tudo isto, sem que ao mesmo tempo se sinta nascer e crescer na alma um sentimento de curiosidade, um desejo intenso de explorar estas ruinas, e investigar a causa que as produziu, visto que os livros sómente nos dizem que por alli existira uma cidade, que tinha o nome de Cetobriga. 

“Como desapareceria Cetobriga? Cairia por decadência do commercio e abandono sucessivo? 

 “Que lição nos estão dando suas ruinas? Attestarão os efeitos da guerra? Estarão alli como exemplo da punição de grandes erros? Quem o sabe?! Seria talvez um cataclismo, uma irrupção violenta do mar, um terremoto que subvertesse a cidade? Estarão alli sepultadas as riquezas de seus habitantes? Por que se não ha de fazer alli uma excavação? Oh! as ruinas são sempre uma página sublime do grande livro da Humanidade! Mal haja quem as não estuda, quem as não compreende, quem compreendendo-as não aproveita suas lições!”

SAL, 1850, p. 2-3

Introdução

Os achados romanos da área urbana de Setúbal (Fig. 3) identificados por José Marques da Costa, em 1957 (Costa, 1960), ao longo de cerca de 700m da margem direita da baía, não lograram alterar aquele paradigma. O achado mais notável, e com maior impacto na opinião pública, dessa extensa visitação ao subsolo arqueológico de Setúbal, ocorreu na Rua Fran Paxeco (antiga Rua Direita de Tróino) e consistiu em: ânfora fragmentada e não recuperada com um tesouro monetário de que foi possível recolher 11091 numismas, depositados no Museu do Convento de Jesus; ânfora completa (Fig. 3C) da forma Beltran 65A (Coelho-Soares & Tavares da Silva, 1978), contendo um tesouro de 7091 moedas do século IV d. C., depositado no mesmo museu. As 18181 moedas recuperadas foram estudadas e publicadas em 1975 pelo coronel J. A. de Carvalho Fernandes, que concluiu serem todas de bronze (médios e pequenos bronzes) e, com raras excepções, respeitarem à “Casa de Constantino Magno e Sucessores”. Exceptuando um exemplar de 187 a 155 d. C., os restantes numismas foram cunhados entre 253 e 363 d. C. Estes achados numismáticos apontam, como outros indicadores arqueológicos, para a crise e insegurança que se instalou, na Setúbal romana, na segunda metade do séc. IV. 

Fernando Bandeira Ferreira (1959) considerou os achados romanos de Setúbal como depósitos secundários associados a operações de secagem de sapais e desvalorizou publicamente as observações de J. Marques da Costa, usando o infeliz argumento de Magister Dixit. Fernando Bandeira Ferreira localiza então Caetobriga no castro sidérico de Chibanes, o que respondia aos pressupostos do sufixo briga de origem celta, significando colina eventualmente fortificada, e propõe a sua migração para Tróia no período romano imperial, quando o sítio de Chibanes foi abandonado; persiste, apesar das evidências materiais postas a descoberto por José Marques da Costa, na ideia de que não existia qualquer estabelecimento estável na margem direita da foz do Sado. Fernando Castelo-Branco (1954, 1963) apoia a hipótese de localização de Caetobriga defendida por F. Bandeira Ferreira, muito embora reconheça a existência em Setúbal de “um pequeno povoado lusitano-romano” sem escala para corresponder à cidade de Caetobriga. 

Fig. 1 – Ânfora Dressel 14 de Tróia, publicada por Gama Xaro, membro fundador da Sociedade Archeologica Lusitana, em 1860, no Archivo Pittoresco. 

Fig. 2 – Taça em prata então depositada na residência do duque de Palmela, muito provavelmente proveniente de contexto funerário de Tróia e publicada pela Sociedade Archeologica Lusitana em 1851 (SAL, 1851, p. 19). 

fig2Caetobriga

Fig. 3 – A-Distribuição dos vestígios romanos observados por José Marques da Costa, quando das obras de saneamento básico de 1957 (Costa, 1960); B-confirmação do mapa anterior pelo projecto “Preexistências de Setúbal”, desenvolvido pelo MAEDS, onde se assinalam os principais contextos romanos escavados e publicados. C- ânfora tardo-romana (Beltran 65A) encontrada na Rua Fran Paxeco, em 1957, repleta de moedas datadas do século IV (Fernandes, 1975).

Fig. 4 – Principais intervenções arqueológicas desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, na área urbana de Setúbal:

1 – Rua Francisco Augusto Flamengo, 10-12;
2 – Travessa dos Apóstolos;
3- Rua Arronches Junqueiro 32-34;
4 – Rua Arronches Junqueiro 73-75;
5 – Rua António Joaquim Granjo;
6 – Rua António Joaquim Granjo, 19 (Casa dos Mosaicos);
7 – Travessa de João Galo, 4-4B;
8 – Largo da Misericórdia;
9 – Travessa de Frei Gaspar;
10 – Travessa da Portuguesa;
11 – Av. Luisa Todi (edifício BCP);
12 – Rua Major Afonso Pala;
13 – Rua Álvaro Castelões;
14 a 16 – Rua António Januário da Silva;
17 – Rua Serpa Pinto;

18 – Avenida 5 Outubro;
19 – Rua Luís de Camões;
20 – Praça de Bocage / Av. Luisa Todi (edifício Montepio);
21 – Praça de Bocage;
22 – Largo do Sapalinho;
23 – Praça de Bocage/Loja Chiado;
24 – Rua de Bocage / Rua Augusto Cardoso (edifício daVinícola/Benetton);
25 – Beco de Dona Maria;
26 – Av. 22 de Dezembro;
27 – Rua Augusto Cardoso;
28 – Praça Miguel Bombarda/Largo do Convento de Jesus;
29 – Rua Acácio Barradas, 2;
30 – Rua António Maria Eusébio;
31 – Praça Machado dos Santos/Largo da Fonte Nova;
32 – Largo António Joaquim Correia;
33 – Baluarte da Nossa Senhora da Conceição;
34- Av. Luisa Todi, nos. 170-178;
35-Av. Luisa Todi, 266-272/Largo da Ribeira Velha.

As intervenções arqueológicas realizadas pelo MAEDS na área urbana de Setúbal (Fig. 4) vieram precisamente comprovar a existência de uma povoação romana (Fig. 5), tendo a distribuição dos seus vestígios ocupado não só o subsolo do burgo medieval muralhado, mas também o dos arrabaldes de Troino e Palhais, em uma extensão linear com cerca de 700m. 

Porém, tão importante quanto a identificação da Setúbal romana foram os estudos sobre a presença romana a uma escala regional promovidos e/ou participados pelo MAEDS, nomeadamente na Ilha do Pessegueiro (Tavares da Silva & Soares, 1993), área urbana de Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006), castelo de Alcácer do Sal (Tavares da Silva et al, 1980-81), Península de Tróia (Étienne, Makaroun, & Mayet, 1994; Mayet & Tavares da Silva, 2000a; Soares, 1980; Soares & Tavares da Silva, 2012), olarias romanas da margem direita do Sado (Coelho-Soares & Tavares da Silva, 1979; Mayet & Tavares da Silva, 1998, 2002, 2010, 2016; Mayet, Schmitt & Tavares da Silva, 1996), calçada romana do Viso (Tavares da Silva & Soares, 1986), estabelecimento do Creiro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2016; Detry & Tavares da Silva, 2016), que permitiram a obtenção de uma visão coerente sobre a romanização à escala do Baixo Sado (Fig. 6); só a esta escala seria possível pensar Caetobriga como uma cidade polinucleada, cujo principal núcleo administrativo se teria situado no território da actual cidade de Setúbal, mas cujos principais sectores produtivos da fileira de preparados piscícolas se localizariam, por um lado, em Tróia (oficinas de salgas e molhos de peixe), e, por outro, na margem direita do Sado (olarias de ânforas) a jusante de Alcácer do Sal, pontuando com as suas manchas florestais e cais o rebordo do extenso salgado que, com a riqueza piscícola da região, fizeram a fortuna de Caetobriga, cidade de artérias aquáticas. 

Destacamos de entre as numerosas escavações de arqueologia urbana levadas a efeito pelo MAEDS, pelos significativos contributos trazidos a esta problemática, as intervenções, dirigidas pela signatária e por Carlos Tavares da Silva, que a seguir se apresentam resumidamente (Fig. 3B), excluída a não menos importante escavação realizada no nº 19 da Rua António Joaquim Granjo, “Casa dos Mosaicos”, precisamente objecto da presente monografia, e que forneceu uma ocupação desde a Idade do Ferro orientalizante ao período medieval islâmico. 

Fig. 5 – Localização de Caetobriga (Setúbal) no Sudoeste da Península Ibérica, em mapa de Mantas, 1999, adaptado. 

(a laranja) Fronteira de província 

(a verde) Fronteira de conventus 

1 – Barrosinha;
2 – Alcácer do Sal (Salacia);
3 – Bugio;
4 – Enchurrasqueira;
5 – Abul; 6 – Pinheiro;
7 – Zambujalinho;
8 – Santa Catarina;
9 – Quinta da Alegria;
10 – Pedra Furada;
11 – Setúbal (Caetobriga);
12 – Alferrar;
13 – Pedrão;
14 – Chibanes;
15 – Painel das Almas (Azeitão);
16 – Comenda;
17 – Rasca;
18 – Outão;
19 – Creiro;
20 – Sesimbra;
21 – Tróia. 

Fig. 6 – Localização de Caetobriga (Setúbal), no contexto arqueológico da ocupação da época romana do Baixo Sado: Adaptado de Soares, 2008. 

Travessa de Frei Gaspar

A intervenção arqueológica, realizada em 1979, abrangeu cerca de 120m2, área pertencente a um lote do centro histórico (contíguo ao edifício da Caixa Geral de Depósitos), onde se localiza actualmente uma oficina de turismo em “co-habitação” com oficina de preparados de peixe da época romana. 

Na metade nascente do lote, directamente sobre as areias de restinga que do sopé da colina de Santa Maria se estendia até à actual Praça de Bocage, localizou-se o peristilo de uma habitação de meados/terceiro quartel do século I d. C.. A camada de ocupação correspondente ao peristilo foi cortada pelo muro de delimitação de uma oficina de preparados piscícolas construída muito provavelmente no período flaviano (Fig. 7), com a “clássica” planta em U ou em L e revestimento de tanques e pátio por argamassa muito compacta e impermeável, constituída por fina brita calcária ligada por cal e areia. Esta oficina (de acordo com os primeiros estudos, neste momento em revisão) ter-se-á mantido em funcionamento possivelmente até à transição para o século III. Nos séculos III-IV foi abandonada e os seus tanques transformados em vazadores de lixo. No século V, alguns tanques receberam novos fundos e voltaram a funcionar (Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986). 

Fig. 7 – Oficina de preparados de peixe da Travessa de Frei Gaspar (Setúbal). Séculos I-V. Seg. Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986. 

A- Planta da área escavada com o peristilo de uma habitação de meados/terceiro quartel do século I d.C. (I), cuja camada de ocupação foi cortada pelo muro de delimitação de oficina de preparados piscícolas (II), construída muito provavelmente no último quartel do século I.

Embora incompleta, pode verificar-se que a oficina possuía uma planta em U, ou em L, cujo pátio abriria para oeste (sob o arruamento actual) e que na base do U, além dos grandes tanques de salga revestidos por argamassa de cal, areia e brita calcária, destinados provavelmente à produção de salsamenta, possuía uma fiada de seis pequenos tanques, presumivelmente destinados à manufactura de molhos de peixe.

B- Aspecto da oficina durante a escavação.

C – Lucerna paleocristã proveniente da C.6 do Tanque 8; tipo Atlante VIII, grupo C, atribuível ao século V d.C. (Bonifay, 2004, p. 360).

D – integração da jazida romana em imóvel de informação turística;
1 – tanques destinados à produção de molhos,
2 – grande tanque destinado à produção de salsamenta,
3 – páteo da oficina. 

Praça de Bocage

A escavação arqueológica (Fig. 8), realizada em 1980, abrangeu a metade sul da placa central da praça, em cerca de 98m2 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-81), no âmbito do programa da sua repavimentação. Estes trabalhos revelaram a existência de uma praia frequentada desde a primeira metade do século I d. C. e a edificação de uma oficina de produção de preparados piscícolas, na segunda metade do mesmo século, que tinha a particularidade de integrar dois tipos de tanques separados por corredor: tanques revestidos por argamassa de cal, areia e brita calcária, destinados ao fabrico de salgas (tanque I), e tanques sem revestimento de qualquer tipo e com fundos impermeabilizados por argila que poderiam ter sido destinados a depósito de água e eventualmente de peixe e que por enquanto só possuem paralelos em fábricas de salga da Bretanha. No amplo pátio da fábrica foi edificado, num segundo momento construtivo, um compartimento quiçá com dois pisos, pois conservou-se o embasamento da caixa de escada, posteriormente subdividido. A oficina laborou até ao final do século II e foi abandonada, transformada em depósito de lixos, durante os séculos III-IV. O tanque I foi reutilizado como habitação durante a Idade Média. Estas estruturas viriam a ser cobertas por camada de areias de origem fluvio-marinha antes da construção da muralha afonsina; a partir do século XVI, o local sofreu uma ocupação funerária, enquanto adro da igreja de S. Julião. 

Fig. 8 – Estabelecimento fabril de salgas de peixe da Praça de Bocage (Setúbal). Séculos I-II. 

fig8Caetobriga

A- Planta da oficina de salgas; 

C – Aspectos da área escavada;

E – Tanque I, revestido interiormente por argamassa de cal, areia e brita calcária; 

B – Aspectos da área escavada; 

D- Tanques III e IV (sem revestimento nas paredes e fundos); 

F – Em primeiro plano, aspectos do Tanque II e do Compartimento A. Seg. Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-81, modificado.

Largo da Misericórdia

Intervenção arqueológica suscitada pela reedificação de lote urbano no lado sul do Largo da Misericórdia, em 1988, com uma área de cerca de 90m2. 

A escavação revelou uma estratigrafia com mais de 2m de potência, tendo como substrato  areias de praia. A primeira fase de ocupação do local iniciou-se no reinado de Tibério (Fig. 9) e prolongou-se até ao século VI (Fig. 10). Registou-se ainda a presença de níveis do período islâmico, Baixa Idade Média e Idade Moderna. 

Na base da sequência estratigráfica foi identificada uma olaria, da qual se escavaram dois fornos geminados, cujas câmaras de aquecimento, de planta circular e com cerca de 3m de diâmetro interno, pertencem ao tipo a da classificação de P. Duhamel, com canais principal e secundários ao mesmo nível. Estes fornos funcionaram durante o período Tibério-Claudio, tendo revelado duas fases de laboração, separadas por curto hiato talvez motivado por trabalhos de reparação. Produziram ânfora Dressel 14 variante A e talvez ainda ânforas lusitanas precoces que, pela sua evolução, teriam originado aquela. 

Este achado veio situar os inícios do ciclo de produção de preparados piscícolas no estuário do Sado no período Tibério-Claudio, muito embora as oficinas de salgas de peixe mais antigas até agora escavadas na área urbana de Setúbal sejam um pouco mais tardias, datando da época flaviana, auge deste ciclo de desenvolvimento económico. A cronologia então proposta (Tavares da Silva, 1996) para o início do ciclo de produção de preparados piscícolas pode agora ser recuada para o período Augusto-Tibério graças à descoberta de entulheira de presumível olaria de produção de ânforas, na Rua António Joaquim Granjo, nº 19. O padrão locativo dos fornos de ânforas do Largo da Misericórdia permitiu defender uma estratégia de integração vertical da produção de salgas e da manufactura de ânforas nos inícios do Império, modelo que seria substituído pelo da organização da produção de salgas de peixe em grande escala, a partir da segunda metade do século I, com a produção anfórica também em grande escala, como na Herdade do Pinheiro (Mayet & Tavares da Silva, 1998), sectorial e fisicamente dissociada dos estabelecimentos de preparados piscícolas, e nas proximidades das matérias-primas (barreiros e floresta) e com acesso a transporte fluvial (Tavares da Silva, 1996, p. 49). 

Proveniente do topo da sequência da ocupação romana do Largo da Misericódia, atribuível à Antiguidade tardia dos séculos V-VI, há a registar o aparecimento de um capitel de influência bizantina  com quatro folhas nervuradas e cálato em V, com paralelos em exemplares de Salacia no que concerne à decoração vegetalista (Limão, 2010). Esta peça confirma a informação, fornecida pela cerâmica de importação, respeitante à chegada ao porto de Caetobriga de materiais de origem norte-africana e oriental em momento avançado da Antiguidade tardia, assinalando o fim do ciclo do sistema económico marítimo em que o sudoeste da Lusitânia se havia especializado (Edmondson, 1987). 

 

Fig. 9 – Largo da Misericórdia (Setúbal).

A-B – Planta e foto da base de dois fornos geminados de produção anfórica. Foram construídos durante o período de Tibério e mantiveram-se em funcionamento durante o período Tibério-Claudio.

C – Ânforas, Dressel 14, var. A, e talvez ânforas lusitanas precoces aí produzidas. Seg. Tavares da Silva, 1996. 

Fig. 10 – Largo da Misericórdia (Setúbal). Capitel (séc. V-VI) de concepção bizantina. Foto de Rosa Nunes. 

Travessa de João Galo, nºs 4-4B

Escavação arqueológica realizada em 1997, em uma área de cerca de 35m2. Neste lote do centro histórico de Setúbal, localizado no sopé da colina de  Santa Maria, identificou-se uma camada de areia de praia com materiais do período orientalizante, subjacente aos estratos da ocupação romana imperial. Durante a segunda metade do século I e século II o local foi ocupado por armazém de ânforas da forma Dressel 14, certamente associado a oficina de produção de preparados piscícolas existente no exterior do lote intervencionado e não muito distante do porto natural da baía de Setúbal. Ainda no século II, e após o abandono do armazém de ânforas, foi construído um edifício monumental virado para uma praça, do qual identificámos parte do podium e elementos arquitectónicos, nomeadamente uma cornija em calcário de grandes dimensões (Fig. 11). Este edifício colapsou na transição para o século III, provavelmente em consequência de sismo. A ocupação do local prolongou-se até aos séculos VI-VII, com uma cultura material de forte tradição romana; Setúbal continuava a receber influências e produtos externos provenientes da actual Tunísia (terra sigillata africana D), a que se juntaram importações da Narbonense (cerâmica estampada cinzenta) e da actual Turquia (sigillata foceence tardia, LRC) (Fig. 12) (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014). 

 Fig. 11 – Travessa de João Galo, 4-4B (Setúbal).

A – Perfil estratigráfico: a C. 9 corresponde ao piso de ocupação em correlação com o armazém de ânforas Dressel 14, em funcionamente desde a segunda metade do século I à primeira metade do século II; o piso da C.7, em correlação com o edifício monumental, da segunda metade do século II, foi destruído por grandes fossas (C.5), associadas ao desmantelamento e aproveitamento de pedra de construções anteriores, fossas datáveis dos séculos IV-V; a C.2, formada após o abandono do pavimento da C. 3, corresponde a uma lixeira doméstica do século VI, com possível prolongamento pelo século seguinte. 

B- Cornija de grandes dimensões, com c. de 3 toneladas, do edifício monumental do século II. Seg. Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2014. 

Fig. 12 – Travessa de João Galo (Setúbal).

Materiais do século VI (Fase V).

Sigillata africana D (nos 1 a 9), sigillata foceense tardia (nº 10), e cerâmica estampada cinzenta (nos 11 e 12).

Desenho de Susana Duarte in Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014.

Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12

A escavação arqueológica decorreu em duas campanhas que tiveram lugar em 2008-2010 e abrangeram uma área de cerca de 250m2 (Fig. 13A) (Tavares da Silva et al., 2010, 2014). Esta escavação revelou uma ocupação de ampla diacronia (Fig. 13B). No que respeita à ocupação da época romana, localizou-se uma lixeira datada da 2ª metade do século I e do século II d. C. Os materiais proporcionados por esta lixeira revelaram um domínio da terra sigillata sudgálica no conjunto das cerâmicas finas de mesa  1 (Fig. 14). As ânforas encontradas documentam a diversificada actividade comercial da Setúbal romana: vinho do Egeu (ânfora da classe 9 de Peacock/Williams), da Península itálica (ânfora Dressel 2-4), do sul da Gália (Gaulesa 4) e do sul de Espanha (Haltern 70); azeite do vale do Guadalquivir (Oberaden 83); salsamenta de produção local, embalada em ânforas Dressel 14; um exemplar conserva ainda os restos esqueléticos de sardinha miúda (Gabriel & Tavares da Silva, 2016) (Fig. 15). 

Após a selagem do vazadouro em fase quiçá precoce do século II, foi construído nas proximidades, em momento impreciso, um grande reservatório de água (Fig. 16), com uma capacidade superior a 250m3. A partir de meados do século IV, a limpeza e manutenção do reservatório revelam-se pouco eficientes. Na base do seu enchimento (C.14), surge terra sigillata africana D (Hayes 61A) associada a ânfora Almagro 51c, variante B. A parte superior do seu enchimento ter-se-ia formado no século V, tal como foi sugerido por alguns materiais como: sigillata africana D (Hayes 91A), ânforas Almagro 51c, Almagro 51a-b e Sado1. Após um prolongado abandono, o lote viria a ser ocupado como necrópole, no período islâmico (séculos X-XI). Nos séculos XIII-XIV depositaram-se no local várias lixeiras domésticas, e embora o lote tivesse sido incluído no interior da cerca afonsina (Fig. 13A), somente a partir da Idade Moderna passa a ser utilizado com finalidade residencial. 

1 – É importante assinalar que mesmo na camada atribuível ao século II, a terra sigillata hispânica é muito rara, o que pode ser explicado pela prevalência do comércio marítimo sobre o terrestre, expectável em um aglomerado portuário como Caetobriga. No entanto, uma cronologia precoce dentro do século II para a camada de selagem da lixeira é admissível, considerando a elevada frequência de terra sigillata sudgálica nessa camada.

Fig. 13 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

A- Localização do lote;

B-Perfil estratigráfico do Locus A, cuja base assentou sobre arenito pliocénico:
Cs. 14 a 11-sedimentos de origem coluvionar com materiais exclusivamente pré-romanos resultantes da erosão e transporte de níveis arqueológicos sidéricos;
C. 10- escorrências do substrato geológico;
Cs. 9-7- níveis de ocupação romana;
C. 6- formação descontínua constituída por fossas funerárias do período islâmico;
C. 5- escorrências do substrato geológico;
C. 4- terraplenagem do lote com mobilização de camadas de ocupação romana de cotas superiores.
Cs. 3-1- pavimentos da época contemporânea. Seg.
Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 14 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal), lixeira alto-imperial.

A – Marcas de oleiro em terra sigillata sudgálica.

1-[…] VSI;

2- OF PATRICI;

3- ISA[…];

4- BIOFECIT.

B – Marcas de oleiro em terra sigillata hispânica.

1- […]E. FIRM, do oleiro Valerius Firmus (forma Drag.27);

2 e 3- PET EROOFI, do oleiro Petronius Eros (formas indeterminadas).

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela in Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 15 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

Lixeira alto-imperial.

Ânfora Dressel 14 da variante C. Continha restos esqueléticos de sardinha miúda em conexão anatómica (salsamenta).

Seg. Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 16 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

Planta parcial de reservatório de água da época romana.

Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Rua Arronches Junqueiro, nº 75

Em uma pequena sondagem de cerca de 9m2 (dada a exiguidade do lote), realizada em 2009, no nº. 75 da Rua Arronches Junqueiro, vertente oeste da colina de Santa Maria, identificaram-se vestígios do peristilo de uma domus, cuja galeria, muito provavelmente porticada, foi pavimentada a opus tessellatum e bordejada por espelho de água. Estes importantes testemunhos arquitectónicos (Fig. 17) prolongavam-se pelo edifício contíguo a poente, que foi objecto de renovação, com reforço estrutural de paredes, em 2015/2016, sem que, estranha e lamentavelmente, tivesse ocorrido acompanhamento arqueológico. 

O mosaico é de estilo geométrico e de movimento tridimensional, apresentando cores vivas (vermelho e ocre) e composição complexa organizada a partir de estrelas de oito pontas losângicas, enquadradas por rectângulos de entrançados; na cercadura exterior pode ver-se uma banda de ogivas e escamas, onde o vermelho é dominante. Foi datado da transição para o século III. Os derrubes que cobriam o mosaico sugerem o colapso do edifício durante o século V/VI (LRC na forma Hayes 3B, ânforas lusitanas das formas Almagro 51c, variante C, Almagro 51a-b e ânfora globular LRA2/ Keay LXV) (Fig. 18) (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010). 

Caetobriga: Setúbal e Tróia

A Caetobriga (Figs. 5 e 6), referida por Ptolomeu 2 e localizada de acordo com o Itinerário de Antonino na desembocadura do Sado, dependia administrativamente de Salacia, principal aglomerado urbano do estuário do Sado, capital de civitas. O farol designado por “Torre dos Salakeinoi” no papiro  de Artemidoro, de finais do século II a. C. (Gallazi et al., 2008) é justamente localizado na desembocadura do Sado por Jorge de Alarcão (Alarcão, 2011), muito provavelmente no Outão. 

Porém, o poder económico de Salacia viria a transferir-se para Caetobriga (Tavares da Silva et al, 1980-81). Atenda-se, por exemplo, ao facto dos centros oleiros da Estrada da Parvoíce (Pimenta, Ferreira & Cabrita, 2016), Barrosinha e Bugio (Mayet, Schmit & Tavares da Silva, 1996) do círculo portuário imediato de Salacia não terem sobrevivido ao século II, ao contrário do observado nas olarias a jusante, que associamos a Caetobriga. 

A referida deslocalização do polo de desenvolvimento económico para jusante resultou por certo da maior acessibilidade de Caetobriga quer aos recursos piscícolas, quer aos mercados consumidores de salgas e molhos de peixe, em cenário de crescente dinâmica de assoreamento do rio (Freitas e Andrade, 2008). Estes factores teriam contribuído para a emergência e desenvolvimento de uma cidade marítima e polinucleada na foz do Sado. Ao núcleo de origem sidérica da margem norte do estuário (Tavares da Silva & Soares, 1986; Soares, 2000) juntou-se um importante aglomerado industrial na margem oposta (Étienne, Makaroun & Mayet, 1994), localizado na actual Península de Tróia, antiga ilha de Achale (cf. Avieno, 1992), cuja fundação pode ser por agora datada do reinado de Tibério (Pinto, Magalhães & Brum, 2011) e é atribuída à iniciativa de uma rica e influente família da Lusitânia os Cornelii Bocchi , na personagem de Lucius Cornelius Bocchus of Salacia (González Herrero, 2011; Alarcão, 2011). Neste centro fabril, por hipótese satélite de Caetobriga, especializado na produção de salgas e molhos de peixe, encontram-se actualmente inventariadas 25 unidades de produção (Pinto et al., 2016), que, sem soluções de continuidade, abrangem cerca de 800 metros ao longo do rio, bem como, espacialmente dissociados, dois outros núcleos fabris localizados no Recanto do Verde e junto do Cais dos Fuzileiros (Fig. 19). 

2 – É referida como túrdula, mau grado o sufixo briga, o que evidencia a vinculação do estuário do Sado ao mundo fenício tardio organizado por Gadir, até ao período romano (Tavares da Silva et al, 1980-81). Com efeito, importa sublinhar que a ocupação sidérica de Setúbal se integra na matriz mediterrânea e orientalizante e que essa tradição cultural, à semelhança do que ocorreu em outros centros urbanos comerciais atlânticos (p. ex. Olisipo), permaneceu até à plena romanização. 

Fig. 18 – Rua Arronches Junqueiro, nº 75.

Ânfora globular LRA 2/Keay LXV, muito provavelmente vinária, de importação oriental (Egeu ou Mar Negro), dos séculos VI-VII
(Vizcaíno Sánchez, 2009, p. 618).

Fig. 17 – Rua Arronches Junqueiro, nº 75 (Setúbal).

Seg. Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010.

fig17CaetobrigaA

Planta da área escavada;

fig17CaetobrigaC

Reconstituição tridimensional;

fig17CaetobrigaB

Foto da área escavada;

fig17CaetobrigaD

Pormenor do mosaico.

No auge do desenvolvimento de Tróia (segunda metade do século I e século II d. C), as 22 oficinas de salgas de peixe onde até agora se realizaram medições (em 80 tanques), teriam uma capacidade de produção mínima de cerca de 1429m3 suficiente para encher mais de 40.000 ânforas (Pinto, Magalhães & Brum, 2011, fig. 39; Magalhães, 2014; Pinto et al., 2016), valor que não abrange a totalidade da capacidade produtiva instalada, mas que é claramente superior à de outros importantes centros produtores de preparados piscícolas do arco atlântico (Olisipo, Baelo Claudia, Lixus). As salgas da Lusitânia do Alto Império destinavam-se em grande parte a exportação por via marítima e foram embaladas em ânforas da forma Dressel 14. Mesmo com suposta recomposição de carga e eventual mudança de vasilhame (por hipótese substituição de ânforas lusitanas por béticas) na cidade-entreposto de Gades, as ânforas lusitanas Dressel 14 são mais frequentes que as de fabrico bético nos níveis do século II de Ostia (Mayet, 2001); a sua presença nos naufrágios de San Antonio Abad (Ibiza), de Saint-Gervais (Bocas do Ródano), Cap Bénat I (Var) e Sud-Lavezzi III (Córsega), entre outros, permite admitir a existência de duas rotas marítimas principais do Sudoeste Peninsular para Ostia: via Tarraconensis e sul da Narbonensis; e através das ilhas baleares e estreito de Bonifácio (Étienne & Mayet, 1993-94; Arnaud, 2005). A esmagadora predominância de ânforas lusitanas de preparados piscícolas na totalidade do material anfórico até agora inventariado em Tróia (Pinto et al., 2016) é bem elucidativa acerca do carácter económico monofuncional deste estabelecimento e da sua vocação para a produção em larga escala (Fig. 20). Decididamente, trata-se de um grande centro produtor e de um relativamente pequeno “mercado” consumidor, se excluirmos as matérias-primas e bens manufacturados (factores de produção) destinados à fileira produtiva de salgas. A imagem de uma população com fraco poder de compra compagina-se bem com o “baixo” estatuto social registado em algumas inscrições funerárias de Tróia (Encarnação, 1984).

Na margem norte do Sado, o núcleo fabril de salgas de peixe e olarias de ânforas atingem, tal como em Tróia, o apogeu durante o Alto Império (Tavares da Silva, 1996; Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-1981, 2014; Tavares da Silva & Soares, 1986; Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986; Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010, 2015; Tavares da Silva et al., 2010, 2014; Soares, 2000). Além dos núcleos principais da ilha de Achale e de Setúbal, não podemos esquecer que no litoral da Arrábida, até à baía de Sesimbra, existia um rosário de estabelecimentos de produção de preparados piscícolas, quer especializados, como o Creiro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2016), quer integrados em explorações agro-pecuárias   como a Comenda (Tavares da Silva & Cabrita, 1964, 1966; Viegas & Soares, 1980; Viegas, 2016). 

Fig. 19 – Localização das oficinas de preparados piscícolas do centro fabril de Tróia em mapa Google. Adaptado de Pinto et al., 2016. 

Fig. 20 – Tróia. Frequência relativa de ânforas lusitanas no conjunto da totalidade das ânforas registadas na jazida. Seg. Pinto, et al., 2016.

 

A actividade piscatória de Caetobriga foi, ao longo do Império, dirigida para espécies gregárias, sobretudo sardinha que constituiu a principal matéria-prima para a manufactura de salgas e molhos. Esta afirmação é suportada pela análise de restos de ictiofauna recolhidos em cetariae e ânforas (Desse-Berset & Desse, 2000; Étienne, 1990; Gabriel & Tavares da Silva, 2016); a ânfora Dressel 14 teria sido usada para transportar salsamenta, como foi comprovado nas escavações da Rua Francisco Augusto Flamengo, mas também provavelmente molhos (liquamen ou muria), de acordo com informação recolhida nas escavações da Rua António Joaquim Granjo (Gabriel & Tavares da Silva, 2016). A informação fornecida por tituli picti em ânforas Dressel 14 (Djaoui, 2016) confirma o transporte de molhos e salsamenta. O principal mercado consumidor dos preparados de peixe lusitanos terá sido Itália e particularmente Roma (Étienne, Makaroun & Mayet, 1994, p. 164- 165). Esse comércio parece ter atingido o seu máximo desenvolvimento na primeira metade do século II (Rizzo, 2016). O certamente extenso salgado que terá servido o complexo de produção de preparados piscícolas do Sado foi presumivelmente sobreposto pelas salinas medievais e posteriores. Do salgado da Herdade da Gâmbia proveio uma ânfora Dressel 14 completa, que deverá relacionar-se com a actividade salineira na Antiguidade. 

Caetobriga afirma-se, pois, como uma cidade portuária, de grande dinamismo produtivo, cujos núcleos seriam ligados sobretudo por via aquática, não se lhe aplicando a noção de cidade “parasitária” e monumental. Só muito recentemente foi possível identificar, na área residencial da colina de Santa Maria, vestígios de edifício monumental, talvez de carácter público (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014; Tavares da Silva et al., 2010, 2014) e de domus com pavimentos musivos e decoração parietal de pintura a fresco (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010), expressão arqueológica da “aristocracia” mercantil local. No núcleo de Tróia, foi igualmente identificada uma área residencial com edifícios de dois pisos decorados por mosaicos e frescos (Rua da Princesa); objecto de escavações antigas, deles muito pouco se conserva, quer no que respeita aos vestígios arquitectónicos existentes no local, quer no que concerne à cultura material móvel. A bibliografia de António Inácio Marques da Costa alusiva às edificações de Tróia (Costa, 1898 e 1930-1931) permite-nos avaliar da qualidade desse sector residencial. 

Fig. 22 – Tróia. Lucerna paleocristã tardia, com cruz no disco e decoração relevada na orla, atribuível ao tipo Atlante X, grupo D4, datado do século VII d.C. (Bonifay, 2004, p. 361; Soares, 1980, Fig. 20).

Foto de Rosa Nunes.

Fig. 21 – Tróia. A – Fresco da basílica paleocristã. O monograma de Cristo foi entretanto destruído.

B – Localização do baptistério (1).

Desenhos de A. I. Marques da Costa, 1930-1931, Figs. 22 e 27. 

 

A partir do segundo quartel do século III, após momento de forte recessão, na passagem do século II para o III, que alguns autores atribuem a sismo de grande magnitude no Sudoeste Ibérico (Mayet & Tavares da Silva, 2010), aquele sector de actividade fabril mostra ainda capacidade para proceder a profunda reorganização através de segmentação ou parcelamento dos estabelecimentos oficinais e da diversificação de salgas e molhos, entre os quais se destacaria o garum (Étienne & Mayet, 2000), muito associado ao tipo anfórico Almagro 51c, o mais produzido nas olarias do estuário do Sado durante o Baixo-Império (Mayet & Tavares da Silva, 2016). 

Ânforas lusitanas do Baixo Império (Almagro 50 e 51c) encontraram-se em naufrágios da rota atlântico-mediterrânea: Gades-Roma-Sicília. E tal como Francoise Mayet afirma ao referir-se ao naufrágio de Cabrera III (Maiorca), muito provavelmente com carga composta em Gades, as ânforas embalariam o garum lusitano, sob a designação de garum hispanum (Mayet, 2001). As ânforas lusitanas do final do IV à primeira metade do século V seguem rotas mais meridionais e associam-se a produtos africanos. A sua presença nas cidades portuárias fica muito aquém do ocorrido nos séculos I e II d. C. Durante o Alto Império, as ânforas lusitanas de salgas de peixe integraram cargas com azeite da Bética e circularam sobretudo segundo a rota Tarraconense/Gália narbonense, mas também através do estreito de Bonifacio. 

Caetobriga entra em declínio durante o Baixo Império, com o abandono e/ou reconversão de estabelecimentos de produção de salgas, mantendo no entanto a produção de preparados piscícolas em pequena escala até ao século V, como foi também verificado na produção anfórica (Mayet & Tavares da Silva, 2016, Fig. 14). Na Setúbal romana – fábrica da Travessa de Frei Gaspar (Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986) – e no estabelecimento do Creiro, Arrábida (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, 2016), observou-se uma reactivação parcial das cetariae durante o século V, após fase de abandono. 

Dos finais do século IV ao século VI d. C., Tróia sofre claramente uma reorientação económica, com destaque para as funções funerária e religiosa; atenda-se às sepulturas de tipo mensa, à basílica paleocristã com pintura mural a fresco (Fig. 21A) (Maciel, 1996) e ao baptistério (Costa, 1898) (Fig. 21B). Esta é a última fase da vida do núcleo de Tróia, que antecedeu o total abandono do sítio até à Baixa Idade Média, quando uma ermida cristã de invocação mariana 3 retomou, no local, a função religiosa, para a comunidade piscatória de Palhais/ Fontainhas, que aí realiza anualmente a sua festa religiosa. A desurbanização atingirá também a Setúbal romana, a partir talvez de finais do século IV, muito embora de forma menos radical, como veremos adiante. 

3 – Capela construída no topo da duna que cobriu, na “boca da Caldeira”, a basílica paleocristã.

Estrutura funcional da Setúbal romana

O núcleo principal da povoação (ver Fig. 13 do Cap. 2, Enquadramento pealeogeográfico) localizar-se-ia na colina de Santa Maria (com cerca de 5 ha.): o centro urbano e principais edifícios públicos, na área do terreiro e igreja de Santa Maria (Soares, 2000); o reservatório de água para abastecimento público, no topo da mesma colina (Tavares da Silva et al., 2010); e as domus da “aristocracia” local na suave vertente que descia em direcção à praia (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010). No exterior do núcleo urbano, a nascente, localizavam-se as necrópoles (Soares, 2000), cujo conhecimento se baseia apenas na necrópole da Ladeira de S. Sebastião, observada, em 1906, por A. I. Marques da Costa, quando da abertura do túnel para a linha férrea (Tavares da Silva, 1966). Recentemente, deparámo-nos com o achado de um fragmento de ânfora romana no subsolo do cemitério de N. S.ª da Piedade, o que pode ser um indicador do prolongamento da área da necrópole romana para nascente, sob o casario do Bairro de S. Domingos e mesmo sob o actual cemitério. A hipótese da Setúbal romana ter “exportado” para Tróia, pelo menos parcialmente, a função funerária, parece-nos muito plausível. 

A restinga arenosa que da base da colina de Santa Maria se dirigia para o que é hoje a Praça de Bocage (Soares, 2000), com cerca de 2,5ha (Largo da Misericódia, Ruas dos Caldeireiros, Paula Borba e Januário da Silva, Largo da Ribeira Velha e Rua do Jornal “O Setubalense”), foi edificada sobretudo com oficinas de produção de salgas e molhos de peixe e olaria de ânforas (Tavares da Silva, 1996), principalmente a partir de meados do século I.

A partir do núcleo de Troino tinha-se acesso às pedreiras do Viso (Soares, 1980) e à via terrestre de ligação a Olisipo (Tavares da Silva & Soares, 1986). 

Para nascente de Caetobriga, ao longo da margem direita do Sado, e na foz da Ribeira da Marateca localizavam-se as olarias de produção de ânforas necessárias ao envasamento dos preparados piscícolas: Quinta da Alegria, Zambujalinho, Pinheiro, Abul (Mayet, Schmitt & Tavares da Silva, 1996; Mayet & Tavares da Silva, 1998 e 2002). Estes centros oleiros aliaram, numa lógica de grande racionalidade económica, a máxima acessibilidade aos barreiros e à floresta, com a manutenção do acesso directo a transporte fluvial. Pela mesma via se chegaria à provavelmente mais extensa área de salinas da região (sapais de Praias do Sado e Gâmbia), onde ocasionalmente têm sido recolhidos materiais anfóricos (ânfora Dressel 14); um outro salgado localizar-se-ia na periferia imediata da cidade, no sapal do esteiro do Livramento, onde se ergue actualmente o convento de Jesus, cuja construção, no século XV, foi responsável pela secagem do sapal e desactivação da prática da salicultura nessa área (Tavares da Silva, 1989). 

A economia de Caetobriga, excessivamente especializada na fileira de salgas e molhos de peixe, encontrava-se muito dependente de mercados consumidores exteriores, mediados muito provavelmente pela cidade-entreposto de Gades. Seria, pois, muito vulnerável às conjunturas económicas, sociais e políticas do Império em geral e das cidades com as quais mantinha contactos comerciais, em particular. A uma crise ocorrida nos finais do século II/inícios do século III, cujas causas não estão apuradas, a economia local reagiu a partir de meados do século III, como salientámos anteriormente, pela via da segmentação e diversificação das produções piscícolas. A partir dos séculos V/ VI, o colapso deste sistema económico-social foi tão intenso que Tróia não voltaria a reurbanizar-se, e Setúbal só voltaria a fazê-lo de forma plena a partir do século XIV (Soares, 2000). No entanto, entre as ruínas da Setúbal tardo-romana, encontramos alguns indícios de resistência a um total despovoamento, como a despojada sepultura colectiva do nº 19 da Rua António Joaquim Granjo, do período visigótico, em que a assinatura isotópica do δ13C e δ15N das suas ossadas põe em destaque a importância dos recursos marinhos na alimentação da pequena comunidade, certamente piscatória, que terá habitado a baía de Setúbal durante o século VII d. C (ver estudo no presente volume). 

Fig. 24 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal). Planta e enterramentos da necrópole islâmica. Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Fig. 24 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal).

Planta e enterramentos da necrópole islâmica. Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Fig. 25 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal).

Necrópole islâmica. Datação radiocarbónica do inumado na Sepultura 1.

Seg. Tavares da Silva et al., 2010.

Período Medieval Islâmico

O período medieval islâmico encontra-se mal representado (Fig. 23), mau grado a atenção dispensada aos seus mínimos vestígios no quadro do projecto sobre as preexistências de Setúbal. Merecem destaque os seguintes testemunhos: 

– Necrópole da Rua Francisco Augusto Flamengo (Tavares da Silva et al., 2010, 2014) (Figs. 24 e 25), de que foram escavadas 22 sepulturas em fossa, com os corpos depositados em decúbito lateral direito, e face virada para nascente, sem oferendas funerárias associadas. O esqueleto 1 (Sond. III, Q. L19, C. 6B) forneceu uma datação dos séculos X-XII (Fig. 25) (Beta-256936: 1000±40BP= 980-1150 cal AD, a 2 sigma). Os valores obtidos para δ13C e δ15N, respectivamente -17,4 (‰) e +11.6 (‰) indicam uma alimentação com elevada componente de proteínas de origem marinha (Schoeninger & DeNiro, 1984); 

– Ocupação de carácter habitacional da RAJG.19 (ver estudo no presente volume). 

– Cabanas das Ruas de Bocage/Augusto Cardoso, ed. Vinícola/Benetton (Soares, 2002), instaladas sobre uma praia de areias fluvio-marinhas (Fig. 26), do período almoada (século XII); 

Figs. 26 – Ruas de Bocage/Augusto Cardoso (edifício da Vinícola/Benetton). Seg. Soares, 2002.
A- Perfil estratigráfico da Sondagem IV realizada na metade sul do lote, virada à R. Augusto Cardoso, antiga R. dos Sapateiros. A C.10 corresponde à ocupação medieval islâmica e nela se registaram fossas de detritos domésticos escavadas nas areias de praia da restinga (C. 11) que atravessa o lote na direcção E-O. As fossas encontravam-se revestidas internamente por argila, o que sugere uma localização interior, provavelmente em cabanas construídas em materiais perecíveis.
B- A cultura material associada indica uma cronologia almoada (século XII). Tenha-se presente que a restinga confinava, na metade norte do lote, com área pantanosa para onde foram sendo atirados lixos de actividades doméstica e agrícola pelo menos até ao século XIV. Uma amostra de vides recolhida nessa área (Beta- 164907) forneceu a data radiocarbónica de 600 ±50 BP, a qual calibrada a 2 sigma corresponde ao intervalo cronológico de 1290-1420 cal AD. A intersecção da data radiocarbónica com a curva de calibração ocorre em três momentos, todos do século XIV: 1320, 1340, 1390 cal AD. Seg. Soares, 2002. 

Quadro 1

Datações radiocarbónicas de estacarias de cais palafiticos, dos períodos medieval islâmico e medieval cristão, anteriores à construção da muralha afonsina.

Séculos XI-XIII. 

Estacarias (Fig. 27) de cais palafíticos anteriores à cerca muralhada afonsina e perpendiculares à linha de costa (edifícios Montepio e BCP na Av. Luisa Todi), datadas radiocarbonicamente dos séculos XI-XIII (Quadro 1), aparentemente sem descontinuidades entre o medieval islâmico e o medieval cristão. Também na Rua Luís de Camões, virada para o esteiro do Livramento, ao abrigo da restinga, foram identificadas estacas do mesmo tipo por enquanto sem datações. Pomares e vinhas bordejavam a área pantanosa onde hoje se localizam a Travessa da Portuguesa, o Largo do Sapalinho, a Rua de Bocage e deixaram testemunhos directos da sua presença (Soares, 2000), através de abundantes macro-restos vegetais; algumas amostras de vides têm vindo a ser datadas; foram recolhidas nas camadas de lodos da Travessa da Portuguesa (ICEN-698, com o intervalo de 1015-1213 cal AD, a 2 sigma), do Largo do Sapalinho (ICEN-699, com o intervalo de 1034- 1253 cal AD, a 2 sigma) e do edifício da Vinícola/Benetton, na Rua de Bocage (Beta-164907: 600±50 BP, com o intervalo de 1290-1420 cal AD, a 2 sigma) (Fig. 28). À semelhança do que foi observado relativamente à cronologia das estacarias dos cais palafíticos, também as vides fornecem um intervalo cronológico que nos permite supor a inexistência de descontinuidades no que ao cultivo da vinha respeita entre o medieval islâmico e o cristão. Por outro lado, a datação obtida para   o sítio arqueológico da Rua de Bocage coloca em destaque a existência de vinha dentro da cerca muralhada afonsina e a tardia conquista de solo urbano à área húmida intra-muros. As primeiras construções em alvenaria registadas sobre o antigo sapal da metade norte do lote do edifício da Vinícola/Benetton foram datadas do século XV (Soares, 2002, p. 251). 

A Setúbal da época islâmica terá, provavelmente, correspondido a uma aldeia de cabanas construídas em materiais perecíveis, cuja economia assentou na pesca, associada a uma agricultura hortofrutícola. As boas condições de porto natural oferecidas pela baía de Setúbal obstaram à autarcia do povoado, mesmo durante a sua fase de desurbanização e ciclo de vida mais depressivo. 

Fig. 27 – Av. Luisa Todi (edifício BCP)

Estacaria de cais palafítico, perpendicular à linha de costa, do período medieval (Soares, 1997)

Fig. 28 – Rua de Bocage.

Edifício da Vinícola/Benetton. Calibração da amostra Beta-164907, constituída por vides recolhidas na C. 10 da Sondagem II. Lab. Beta Analytic Inc.

Antecedentes proto-históricos Travessa dos Apóstolos

Em 1984, a escavação de emergência na Travessa dos Apóstolos, na colina de Santa Maria, em lote urbano a reedificar, desenvolvida em uma extensão de cerca de 100m2, revelou a mais potente estratigrafia e a mais ampla diacronia da ocupação humana do subsolo do centro histórico de Setúbal (Soares & Tavares da Silva, 1986; Soares, 2000). Pela primeira vez, foram registadas camadas arqueológicas anteriores à época romana, atribuíveis ao Bronze final, século VIII ( C. 14) e à I Idade do Ferro, séculos VII-V a. C. (Cs. 12 e 13). Os resultados desta intervenção permitiram recuar as origens de Setúbal para momento tardio do Bronze final , ou seja, para a fase de interacção das comunidades indígenas da foz do Sado com os mercadores fenícios do Ocidente, no quadro da construção do império comercial atlântico da metrópole fenícia de Gadir. A colonização fenícia do estuário do Sado terá estabelecido forte vínculo comercial com a comunidade do Bronze final da foz do Sado (povoado da colina de Santa Maria), antes de fundar a sua própria feitoria em Abul (Mayet & Tavares da Silva, 2000b), a meia distância entre a desembocadura do rio e o fundo do estuário, onde se localizava o povoado da colina do castelo de Alcácer do Sal (Tavares da Silva et al.,1980-81). Em ambos os povoados, de fundação indígena, o processo de miscigenação cultural com os colonos fenícios do círculo do Estreito foi tão intenso e persistente que a matriz cultural orientalizante haveria de prosseguir até à romanização 4. 

Após a descoberta destes primeiros vestígios da Setúbal proto-histórica, outros achados datados da Idade do Ferro têm vindo a ser identificados nas vertentes meridional e ocidental da colina de Santa Maria, nomeadamente na Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12, Rua Arronches Junqueiro, nos. 32-34, Travessa de João Galo, nºs 4-4B, no nº. 19 da Rua António Joaquim Granjo (RAJG.19). De um modo geral, os materiais recuperados vão do século VII ao século V a. C., havendo entre este período e a ocupação romana imperial uma descontinuidade que nos tem feito pensar em provável deslocalização do povoado sidérico durante a II Idade do Ferro. 

Com uma topografia pouco interessante para um castro da II Idade do Ferro, o centro histórico de Setúbal, se excluirmos a colina de Santa Maria, apenas ofereceria razoáveis condições para aquele assentamento no esporão sobranceiro à margem direita do esteiro do Livramento (colina de Nossa Senhora da Saúde), onde não têm sido realizadas operações de renovação urbana motivadoras de quaisquer intervenções arqueológicas. Porém, mais recentemente, na Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 e na Travessa de João Galo, nºs 4-4B, foram encontrados materiais atribuíveis aos séculos IV-I a. C., em ambos os casos descontextualizados, no primeiro em resultado de intensos processos de erosão e abarrancamento de vertentes (coluviões), e no segundo, misturados com areias da praia que constituíram a base da sequência estratigráfica. De destacar a presença de cerâmica de mesa afim da de tipo Kuass (Tavares da Silva et al., 2014, Fig. 6, nº13) e de ânforas de tipo Maña-Pascual A4 (grupos 11 e 12 de J. Ramon) 5, e ainda da ânfora atribuível com algumas reservas à forma Dressel 1 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014, Fig. 4), que assinala o período romano-republicano, tão bem representado, ao contrário do observado em Setúbal, no vizinho castro de Chibanes (Soares & Tavares da Silva, 2014). 

4 – A resiliência da metrópole de Gadir/Gades foi notável. A partir de meados do século V e durante o século IV a. C., encerrado o ciclo metalúrgico, reorganiza o seu papel como placa giratória do comércio mediterrâneo/atlântico, através do incremento da produção de preparados piscícolas. Tira partido da abundância de peixe nas águas atlânticas, transformando-se no principal abastecedor de salgas de peixe à escala do Mediterrâneo. Nos alvores do século III a. C., liberta-se do “asfixiante” imperialismo cartaginês, colocando-se voluntariamente na dependência de Roma, o que lhe permitiu continuar a exercer a sua influência regional, controlando o comércio atlântico-mediterrâneo. 

5 – A cultura material da Idade do Ferro turdetana (sécs. V/IV-III/II a.C.) inclui entre outras importações, cerâmica de mesa tipo Kuass e ânforas Mañá-Pacual A4 que transportavam salgas de peixe produzidas na baía de Cádiz. Nas condições de jazida aberta de uma praia (Travessa de João Galo) apenas podemos considerar alguns elementos tipologicamente significativos que apontam para uma matriz cultural mediterrânea adentro da II Idade do Ferro.

Introdução. Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado​

Joaquina Soares - Carlos Tavares da Silva