2.4. A Economia do Algarve sob a Domínio Romano
Com os dados atualmente disponíveis não é fácil tentar esboçar as características gerais da economia do território do Algarve sob o domínio romano. Contudo,
parece-nos possível tragar um primeiro quadro hipotético que, naturalmente, terá de ser devidamente testado por futuras investigações.
Em primeiro lugar parece evidente que as formas de povoamento enquadráveis na designação genérica de villae escolhem para a sua implantação as áreas onde existem terrenos da Classe A, de maior aptidão agrícola e, somente em casos excecionais —Baralha 2 (594.4.6), Cerro da Vila (8/298), Quinta de Marim (8/311), Loulé Velho (8/300) e, talvez, nos estabelecimentos dos arredores de Balsa— se encontra documentada uma associação entre explorações agrárias e estruturas destinadas ao processamento do pescado. Deve salientar-se, porém, que o único caso minimamente conhecido, o do Cerro da Vila, apresenta somente dois pequenos tanques, provavelmente destinados somente a uma produção para consumo local. Nos outros casos, não existem garantias mínimas de uma real associação entre as eventuais villae e as cetariae. De qualquer modo, em qualquer dos casos citados, existem potencialidades efetivas de exploração de recursos diversificados. Refira-se, ainda, que o facto de se terem identificado vestígios de tanques com revestimento de opus signinum não autoriza a sua classificação como cetariae, já que, por exemplo, os tanques da Abicada (7/107), pela sua localização não parecem destinados á produção de preparados de peixe, como tem sido sugerido.
A ausência de investigações sistemáticas impede-nos de avaliar com segurança o panorama da agricultura algarvia do período romano. Tendencialmente, seríamos levados a supor que a clássica tríade mediterrânea de cercais, azeite e vinho constituiria uma importante componente, sem esquecer, todavia, o peso que os hortícolas têm na alimentação e, no caso concreto do Algarve, a relevância que já poderiam ter os frutos, frescos ou secos.
Sobre os primeiros, estamos, à partida, fortemente limitados. Sobre a produção cerealífera, na época, nada sabemos. A existência de algumas estruturas de lagar, presumível ou seguramente romanos, parece indicar a produção de vinho e, eventualmente, de azeite. De entre estas estruturas, são seguramente romanos, os lagares de vinho de Abicada (7/107) (Viana et alii, 1953: 128-129), Vale da Arrancada (7/114) (Santos, 1972: 187-190), Mílreu (8/304), Quinta de Marim (8/311). Presumivelmente romanos e destinados á produção de azeite teriam sido os lagares de Loulé Velho (8/300), Dona Menga (8/314), Almada nim (594.2.1), Monte da Torre (7/103), todos eles identificados pela presenta de prensas (v. fig. 5).
Para lá destas informações, poderá ser pertinente o recurso a informações de períodos históricos mais recentes e o seu confronto com o registro arqueológico existente. Assim, resulta interessante verificar que a produtividade dos cercais no Algarve foi sempre extremadamente baixa, não faltando indicadores de privilégios para os importadores e menções a abastecimentos vindos do exterior, por não se conseguir obter localmente a quantidade necessária para prover as necessidades das populações (Marques, 1968: 145, Ribeiro, s/d: 84 e Balbi, 1822: 148).
Naturalmente, estes dados não autorizam a conclusão de que no período romano a produtividade das searas fosse insuficiente para as necessidades locais. No entanto, é de supor que as limitações pedológicas não permitissem um grande desafogo neste domínio.
A cultura da oliveira não se encontra amplamente disseminada, no Algarve (Ribeiro, 1979) e o azeite local é considerado de má qualidade desde há longa data, sendo a região tradicional importadora deste óleo vegetal (Balbi, 1822: 150 e Feio, 1983: 117).
Quando no século XIX se iniciou a nova era das conservas algarvias, uma vez mais, se recorrem a importação de azeite para a industria (Feio, 1986: 136). Embora não julgue lícito presumir pela importação de ânforas, que transportam determinado produto, a inexistência do mesmo no local de receção, já que outros fatores, como o consumo sumptuário ou a troca de ofertas, podem explicar estes intercâmbios, é interessante verificar que o registro arqueológico do Algarve apresenta diversos indícios de importação de azeite da Baetica e Norte de África no período romano em Torre de Aires (8/318), Quinta de Marim (8/311), Quinta do Lago (610.2.3), foz do Arade (Silva et alü, 1987), Cerro da Rocha Branca (7/112) (Gomes et alii, 1986) e Monte Moliáo (7/139). Pela abundancia e dispersão destas importações, bem como pelos dados conhecidos para outras épocas, sugere que, de facto, a região não seria particularmente rica neste produto.
Já o vinho parece ter tido uma diferente relevância. Ao contrario do que acontece com o azeite, o vinho algarvio é produto de há longa data celebrado e tradicionalmente exportado em outros períodos históricos (Balbi, 1822: 151, Ribeiro, s/d: 81 e ss. e Garcia, 1986: passim). O registro arqueológico das ânforas importadas, documenta a presença de contentores de vinho, provenientes da Península Itálica e da vizinha Beática, mas apenas para o período tardo-republicano e inícios do século I. Sublinhe-se, contudo, que não se conhecem vestígios de exportações do vinho algarvio para fora do seu território no período romano, já que todos os fornos de ânforas conhecidos parecem ter fabricado exclusivamente contentores para preparados piscícolas, com uma possível exceção, adiante referida (v. anexo 1).
Em contrapartida, a exploração de produtos hortícolas e frutos de pomar, as principais produções agrícolas locais, atestadas desde o período muçulmano (Coelho, 1972: 41, 55, 6l-2 e Ribeiro, s/d: passim e Garcia, 1986: passim) poderão mergulhar as suas raízes na organização de espago rural promovida pelos romanos.
De facto, se é difícil, á falta de dados arqueológicos determinar a extensão, ou mesmo a existência, de pomares, nesta época, mais interessante resulta verificar a existência de diversas barragens construídas no período romano em território algarvio (Quintela et alii, 1986 e Cardoso et alii, 1990). Aparecem regularmente distribuídas por todo o território (v. figura 5), desde o Alamo (8/255) até Espiche (Cardoso, et alii, 1990: 2.7.) e, se é certo que poderiam ter conhecido multiplas utilizações, desde o abastecimento de termas em âmbito rural, aos abastecimentos urbanos, forneciam, sem dúvida, importantes recursos para a agricultura de regadio.
No que diz respeito á exploração de frutos, não estamos melhor informados. Registe-se, porém, a presumida existência de uma produção algarvia de ânforas com fortes semelharas com a Classe 19 (= Beltran lib) cujo conteúdo se desconhece.
Como em outro local já se referiu (Fabião/Guerra, no prelo), é possível que estes contentores se destinassem ao transporte de conservas de frutos, designadamente azeitonas. No entanto, para não construir sobre base quase inexistentes, limito-me a sugerir a possibilidade de remontar ao período romano a exploração e exportação de conservas de frutos algarvios, hipótese a confirmar em futuras investigações.
Parece, portanto, aceitável supor que a paisagem rural algarvia no período romano não teria sido multo diferente da existente em tempos medievais que note-se, subsistiu até aos nossos dias.
A economia algarvia do período romano, tinha na exploração dos recursos marinhos uma importante componente, aparentemente sem relação direta com o mundo rural. A implantação das estruturas destinadas a produção de preparados de peixe não sugere qualquer intenção de exploração complementar de recursos agrícolas, visto que não foram, na generalidade, e salvo os poucos casos citados, instalados em áreas com terrenos de aptidão agrícola acessíveis, nem tampouco há qualquer indicador preciso da associação entre aquela e estas atividades.
Pelas limitações do registro arqueológico disponível (v. anexo 2), não é possível estabelecer um quadro cronológico para o funcionamento dos centros de produção de preparados de peixe, multo menos, para os seus ritmos de laboração.
Como já se referiu, é possível que a exploração destes recursos remonte a tempos pré-romanos, como acontece na área de Gades, ou a uma época imediatamente posterior á conquista, como sucede em Baelo. No entanto, deve sublinhar- se que não existe qualquer indicador que autorize estas suposições. Em termos mais concretos, seria possível fazer remontar a um qualquer momento do século I d.C., já que alguns dos sítios arqueológicos listados forneceram materiais desta época (v. anexo 2), embora a sua produção não se destinasse a exportação, visto que apenas um dos fornos de ânforas conhecidos, o de Olhos de S. Bartolomeu (8/292), tenha fabricado contentores neste período. A maior parte deles estava seguramente em atividade no Baixo Imperio, prolongando-se a sua utilização pelo século V e, talvez, o VI.
Combinando os pontos dados seguros fornecidos por estes locais e outros dados arqueológicos do Algarve, com a informação obtida nos diferentes fornos que produziram ânforas (anexo 1), verifica-se que a sua quase totalidade se enquadra cronologicamente no Baixo Imperio. Somente o(s) forno(s) de Olhos de S.Bartolomeu (8/292), precisamente o(s) mais próximo(s) da Baetica, parecem) ter iniciado a sua laboração ainda no Alto Imperio o que, naturalmente, suscita a incómoda questão de saber se estaremos a tratar globalmente, como se de um processo unitário se tratasse, realidades, afinal, diferentes. Na impossibilidade de responder cabalmente a esta interrogação, resta-nos percorrer outros caminhos.
Uma vez mais, como as limitações já expostas quando se referiram as questões relativas as importações de ânforas olearias e vinícolas, é interessante verificar que o território algarvio recebeu nos séculos I e II d.C. contentores de preparados de peixe da Baetica —presentes em Balsa (materiais em curso de publicação), Quinta do Lago (materiais recolhidos por Ana Margarida Arruda), foz do Arade (Silva et alii, 1987), foz do rio de Lagos (Santos, 1971: 116-119 e fig. 39)— e da própria província da Lusitânia, provavelmente do vale do Sado – talvez um exemplar em Balsa, outro na Quinta do Lago (Arruda/Fabião, 1990: 202) e na foz do Arade {SILVA et alii, 1987: 210-21A^. Embora não saibamos ainda qual a extensão e significado do fenómeno, verifica-se também uma apreciável importação de contentores de preparados de peixe da Baetica no interior alentejano, notória em Vipasca (materiais depositados no MSGP), nos sítios romanos de Castro Verde (Madeira, 1986), na villa de S. Cucufate, Beja, e sua área envolvente, onde chegam também as produções do vale do Sado (Alarcado et alii, 1990: 252-254). Parece significativo, por outro lado, que a villa da Vidigueira tenham chegado, embora em pequena quantidade ânforas tardias do Algarve (Alarcáo et alii, 1990: 253).
Face a estes dados, afigura-se possível avançar uma primeira hipótese sobre a produção e exportação dos preparados de peixe no extremo meridional do atual território português. Numa primeira fase, eventualmente datável dos séculos I e II d.C., na época em que a exportação dos recursos marinhos da Baetica dominava os diferentes mercados do Imperio, o Algarve poderá ter começado a explorar os mesmos recursos, embora, aparentemente, não os exportasse, com a eventual exceção da zona do estuário do Guadiana. Esta exceção não deixa de ser interessante, já que poderá sugerir uma influencia mais marcada de modos de vida béticos, no extremo oriental do Algarve. Num momento datável do século III e, seguramente, continuado no IV e V, pelo menos, a região terá intensificado a produção e, talvez, só então iniciado a sua exportação em moldes significativos, provavelmente tirando partido do declínio dos centros da Baetica e Norte de África (Ponsich, 1988). Assim, e ao contrario do que supôs Vasco Mantas (1990: 199) o que afetou Baelo e outros sítios costeiros da atual Andaluzia —quer tenham sido as correrias mouriscas, um abalo sísmico em outro qualquer fenómeno—poderá ter dado origem a um período de particular prosperidade para o Algarve.
Uma vez mais, como todas as reservas que a precaridade da informação disponível impõe, parece interessante verificar que a época tardo-romana nos apresenta esta região com uma apreciável circulação e entesouramento monetário, que contrasta fortemente com o panorama oferecido por épocas anteriores conhecem-se 9 tesouros dos fins do séc. IV ou inícios do V e em Loulé foi recolhida uma das poucas moedas de um imperador do século V no atual território português (Pereira et alii, 191 i: Cartas 18 e 21). A continuidade do enquadramento nas redes de intercâmbios mediterrâneas está igualmente atestada pelas importações de cerâmicas finas, como a «sigillata» fócense {= late Roman O, documentada na Quinta de Marim (8/311), Loulé Velho (8/300) e Cerro da Vila (Maia, 1978: 300-302 e Est. III).
Infelizmente, no estado atual dos nossos conhecimentos, não se afigura possível determinar quando se terá operado a rutura da geografia social e económica lentamente forjada pelo presenta romana no território algarvio. Todavia, há suficientes indícios que apontam uma sobrevivência, pelo menos em alguns sectores, para lá da desagregação do Império.
Deixando de parte as cidades, já sucintamente tratadas (2.1.), é interessante verificar que todas as grandes villae escavadas neste século —Abicada (7/107), Cerro da Vila (8/298), Milreu (8/304)— documentam uma persistência da ocupação que ultrapassa «crises» e «invasões», até a época muçulmana. Outros pontos de povoamento do mundo rural apresentam situações análogas, com sítios romanos e muçulmanos sobrepondo-se ou ocupando espaços próximos, o que, neste último caso, demonstra, no mínimo, uma descontinuidade de ocupação, mas uma identidade de motivos para a instalação. Temos de reconhecer que a amostra disponível não é muito extensa. No entanto, parece notável a homogeneidade verificada em todas as situações conhecidas. A dificuldade em determinar a malha do povoamento para o período compreendido entre os sáculos V e VIII terá que ver, fundamentalmente, com o grande desconhecimento que ainda temos das realidades arqueológicas destas épocas.
Os grandes centros de produção de preparados de peixe oferecem um panorama radicalmente diferente, já que a norma é a do abandono definitivo. Este, torna-se particularmente notório nos núcleos do Sudoeste, não só porque também foi um deles, a Boca do Rio (7/132), objeto de escavações neste século, mas também porque constituíam o grande Pólo produtor/exportador do Baixo Império, fora de âmbito urbano. Foi certamente a rutura da ampla rede de intercâmbios mediterrâneos, onde estes produtos estariam envolvidos, ocorrida algures entre o século V e o VII, que precipitou a sua decadência irreversível.
Teriam um carácter marcadamente especializado, impossível de converter a outras atividades. Também esta diferença de destinos sublinha a clara demarcação entre núcleos rurais e centros de exploração de recursos marinhos.
Durante o período romano, o atual território do Algarve explorava intensivamente diferentes recursos que, por serem complementares, Ilhe garantiam uma prosperidade particular. Na costa, centros de exploração de recursos marinhos ombreavam com sumptuosas villae, instaladas em manchas de bons solos agrícolas.
Provavelmente os mesmos proprietários controlariam uns e outros; é admissível que a mão-de-obra mobilizada para umas e outras atividades fosse, em boa parte, constituída pelos mesmos homens. Contudo, esta complementaridade tinha um carácter mais regional e não exatamente nos mesmos sítios. O barrocal e a serra forneceriam outros tantos artigos complementares.
Este bem sucedido modelo de povoamento, articulava-se com as suas regiões próximas da Baetica e da Mauritania Tingitana, igualmente integradas na diócesis Hispaniarum. Este enquadramento foi quebrado somente no século XIII, quando o reino de Portugal estabeleceu fronteira no Guadiana, ao mesmo tempo em que as diferenças religiosas separaram definitivamente as duas margens deste «pré-Mediterrâneo».