As fontes textuais deixadas pelos autores da antiguidade foram, por muito tempo, o principal recurso para a compreensão da produção romana dos preparados de peixe. De facto, essas fontes disponibilizam uma descrição ampla e detalhada dos múltiplos aspetos da atividade pesqueira romana republicana e imperial, inclusive o processamento e comércio dos preparados de peixe.
A terminologia latina identifica variedades tipológicas da produção dos preparados à base de peixe, bem como da matéria-prima utilizada na sua confeção. Fontes epigráficas, como os tituli picti, ainda revelam detalhes sobre o local da sua proveniência ou da destinação do produto. A identificação e classificação das tipologias produzidas e as explicações literárias romanas para a terminologia romana formam o primeiro passo para o estudo do tema. Portanto, os estudos das fontes literárias são particularmente interessantes para aqueles que investigam a geografia da produção dos preparados de peixe.
Os autores antigos deixaram-nos comentários acerca da estrutura, funcionamento e desenvolvimento dessa produção. No caso da Península Ibérica, a obra de Estrabão, “Geografia” (livro III) oferece informações normalmente confirmadas pela arqueologia do início do período romano imperial (Garcia Vargas e Bernal Casasola: 2009, 135). De igual importância se acrescenta a obra de Plínio, “Historia Naturalis”, devido ao seu caráter enciclopédico.
Os antigos autores diferenciavam os preparados sólidos, ou conservas (salsamenta, tarichos) dos molhos (líquidos) à base de peixe (Curtis, 1991: 6ff). Apenas uma única referência textual antiga sobre a confeção dos preparados sólidos sobreviveu ao tempo, deixada por Columella (De Re Rustica 12, 55,4), no século I d.C. Contrariamente, abundam os relatos descritivos da produção dos molhos líquidos, desde Marcus Manilus, “Astronomica” (V, 656-681), também no século I d.C., até a obra “Geoponica” (20, 46, 1-6), bizantina e anónima, do século IX d.C.
Dentro desta segunda categoria, dos molhos, a terminologia era utilizada de acordo com a qualidade do produto. A documentação romana lista quatro molhos de peixe “distintos”: garum, liquamen, muria e hallex (Dumitrache, 2009: 553). Contudo, essa “distinção” deve ser considerada com cautela, uma vez que, nem sempre essa terminologia é empregue de maneira clara. Por vezes ocorrem generalizações e simplificações quanto à verdadeira natureza do produto referido.
Há um grupo especial de produtos que se conhece apenas pelas suas referências nas fontes literárias (hydrogarum, oenogarum e oxygarum). Esses produtos nunca foram atestados nos tituli picti ou documentação similar (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136; Bombico, 2017: 127).
Por outro lado, quando a designação dos produtos mencionados pelos tituli picti coincidem com aquela mencionada pelas fontes literárias, não há a certeza absoluta de que se trate de uma correspondência perfeita entre os produtos referidos pelas ânforas e pelos autores antigos. Há que se considerar uma possível evolução semântica, pelo que a terminologia técnica para designar os diferentes preparados de peixe poderiam ser usados de maneira mais genérica, seja por vícios linguísticos ou regionais (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136).
Não se sabe ao certo a origem etimológica do termo “garum”, a não ser que seria a latinização do termo grego homófono. Plínio cunha o termo na sua Naturalis Historia (31. 93-94) ao mencionar que um produto à base de cavala 11 consistia num garum de alta qualidade, sugerindo o aproveitamento do seu sangue (hematites). O aproveitamento do sangue é ainda comentado por Séneca (“Epistulae Morales ad Lucium” 95.25) 12.
11 Em Origines (20, 3 ,19), Isidoro de Sevilha, emprega o termo “garum” para identificar um tipo específico de peixe: “(…) quae Graeci garon vocabant”. Essas são precisamente as mesmas palavras lidas na Naturalis Historia de Plínio ao definir o garum como um molho: “liquor piscium salsus (…) quae Graeci garon vacabant” (XXXI. 93).
12 “Illud sociorum garum, pretiosam malorum piscium saniem (…).”
A receita de garum mencionada nos Geoponica (20.46.6) considera o haimation como o tipo de garum mais valioso. A seguir, descrito no século III d.C. na obra de Sextus Iulius Africanus (Kestoi 1.19.105) viria uma receita intermediária em qualidade denominada garós sókkios. Esta receita aproveitava as entranhas dos peixes, que consequentemente incluiria o sangue.
O termo “garum” foi ainda utilizado genericamente para definir o molho (preparado líquido à base de peixe processado) com o emprego de condimentos. O liquamen aparece como um produto distinto do garum, ainda que de natureza similar (Étienne, Mayet, 2002: 50 – 51). Todavia, se garum e liquamen, não forem exatamente o mesmo produto, eles terão tido receitas extremamente similares, preparadas à base de vísceras, ovas e sangue de peixe (ou mesmo de pequenos peixes), macerados com sal e aromatizantes (Bombico, 2017: 127).
De facto, a partir do século I d.C., o termo liquamen passa a ter um emprego generalizado 13. Por volta do século IV d.C., já não se encontram mais referências ao termo garum, a não ser em ocasiões excecionais 14.
13 Fabião e Guerra (1993: 999 – 1003) observam que na obra do século I d.C., De Re Coquinaria, de Apício, o termo “liquamen” substituti o termo “garum” na base de 425 referências contra 2.
14 Martial escreveu, na segunda metade do século III d.C., que liquamen era garum misturado com vinho: “confecto liquaminis quod onegarum vocant” (Curae boun, 62). No século V d.C., Aureliano reproduz a equivalência garum-liquamen: “garum quod appellamus liquamen” (Tardarum passionun, 2.1.40).
Columela descreve a muria como o produto de uma salmoura obtida a partir da mistura feita num quadratus (ca. 28 l) de água doce com um modius (ca. 8,75 l) de sal (De re rustica, 12, 6). O termo também era utilizado genericamente para molhos de peixe (Étienne, Mayet, 2002: 47)15. O allec (hallex, allec ou allex) certamente tratar-se-ia de algum produto secundário, derivado dos residuais da produção do garum/liquamen (Dumitrache, 2009: 554). Subprodutos mencionados por Apício mencionam os compostos hydrogarum, oenogarum e oxygarum como resultantes da adesão, respetivamente, de água, vinho e vinagre ao liquamen (Bombico, 2017: 127).
Existe também a informação textual reunida pela própria arqueologia, a partir dos tituli picti 16 referenciando as ânforas de salsamenta. Esses rótulos comerciais possuem uma importância estratégica para o estudo da produção dos preparados de peixe. As etiquetas sugerem uma vasta tipologia de produtos e/ou receitas não mencionadas pela literatura greco-latina disponível. Contudo, deve-se adotar essa fonte com precaução, uma vez que a sua leitura é, por vezes problemática (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009: 136).
16 Rótulos comerciais pintados sobre as ânforas de transporte. Esses rótulos normalmente abreviam uma informação geral sobre o volume, a proveniência e qualidade do produto, bem como a identificação do produtor.
Um caso emblemático do processo de análise e debate de um tituluis pictus ocorre com a identificação de um suposto subproduto denominado laccatum. Tratar-se-ia de um molho de peixe combinado com um tempero-colorante (lac/ lacca/ laccat que indicaria a sua proveniência em Lacca, na Bética (Sarhage, 2002: 72).
Contudo, Djaoui (2016) demonstrou que tal produto, de facto, não existiu, tendo se tratado de um equívoco de leitura. Na segunda linha do depinto do pescoço de uma ânfora Dressel 14, onde constava LAC[–], a leitura que propôs “LAC(catum)” foi corrigida pelo autor para LAC(certus) CAT(tulus). As Dressel 14 são normalmente destinadas ao transporte de liquamen, e a presença de LAC[–] constar na segunda linha do depinto tornavam inviável que se desenvolvesse o texto como “laccatum”. Djaoui então propõe lacertus como a proposta ideal de identificação do tipo de peixe processado.
Os tituli picti também identificam a proveniência do produto de maneira mais direta. Por exemplo, anotações como Garum Ostiense, revelavam uma proveniência de Óstia; garum Lunense, itálica; liquamen Antipolitanum, de Antípolis; muria Malacitana, de Malacca; hallex Herculanensis, de Herculano (Dumitrache, 2014: 555).
Sabe-se que os molhos mais referidos pelos tituli picti eram fabricados a partir da cavala (scombri), atum (thunnus, cordula), ou ainda uma mistura, denominada garum geminus 17 (Dumitrache, 2009: 555). Essas matérias-primas são regularmente referidas nos rótulos pintados nas ânforas. Assim, o chamado garum scombri (CIL IV, 2574-2580; 2583; 2586; 9415) seria fabricado a partir de cavalinha, tal como o liquamen scombri (CIL IV, 2588) e o hallex scombri (CIL XV, 4730-4731).
17 CIL, IV 5826-5827; 9392-9393; 10272-10273.
A terminologia das etiquetas também podia incluir epítetos que informavam sobre a qualidade do produto. Os molhos considerados “puros” eram diferenciados daqueles que recebiam condimentos extras na sua receita. Os epítetos incluem flos e flos flos, optimum, praecellens, primum, secundum, excellens, flos excellens, entre outros. Não se compreende ainda claramente qual era o critério de hierarquização desses epítetos, ou sequer possíveis equivalências qualitativas entre eles (Dumitrache, 2009: 556).
Há ainda um caso emblemático de registo de proveniência que acumula uma garantia de qualidade. Trata-se do chamado “garum sociorum”, marca de uma societas estabelecida em Carthago Nova. Os autores clássicos são unânimes ao atribuírem um status superior ao “garum sociorum”, de origem hispaniense, em razão da sua qualidade.
Étienne (1970) defende que haveria ali uma referência a alguma companhia concessionária regional, administrando salinas e cetárias e processando produtos de salga e conserva piscícolas. Em oposição a essa visão, Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009) defendem que, na realidade, haveria sim uma variação hispaniense da receita.
A existência de uma “receita hispaniense” pode induzir à ideia de que haveria na Bética uma produção centralizada e homogénea. Todavia, os tituli picti apontam para uma possível “fragmentação” da produção bética, uma vez que os negotiatores salsarii béticos compram e envasam os seus produtos a partir de origens diversas. Sabe-se que M. Valerius Abinnericus transportou para Pompeia a produção de Clarus de Ossonoba e de vários outros produtores (Étienne, Mayet, 1998: 214; Étienne, Mayet, 2002: 229).
A epigrafia lusitana, que poderia auxiliar a elucidar a questão, não está disponível em volume suficiente para orientar especulações a esse respeito. Sabe-se que, a título de comparação, na Bética existiam sociedades dedicadas à exploração dos preparados de peixe. Essas sociedades articulavam mercatores e negotiatores salsarii baetici com a Italia e com o limes germanicus e o norte da Gallia (Bombico, 2017: 113).